Uma das mais novas plataformas de streaming do Brasil, a Reserva Imovision lança nesta sexta-feira (16) cinco filmes de um dos diretores mais consagrados — e controversos — do cinema contemporâneo: Michael Haneke, 79 anos. Austríaco nascido em Munique, na Alemanha, ele é um dos raros cineastas que conquistaram duas vezes a Palma de Ouro nas quase sete décadas do Festival de Cannes (os outros foram Bille August, Emir Kusturica, Ken Loach e os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne). Alcançou essa façanha com A Fita Branca (2009) e Amor (2012), que também ganhou o Oscar de longa internacional. Esses dois títulos já faziam parte do catálogo da Reserva Imovision, ao qual se somam agora O Sétimo Continente (1989), Violência Gratuita (1997), Código Desconhecido (2000), O Tempo do Lobo (2003) e Caché (2005) — leia mais sobre cada um logo abaixo.
Haneke especializou-se em provocar mal-estar na plateia, gerando fãs e também detratores. É que seus filmes apresentam um espelho onde reflete, sem pudores, sobre assuntos espinhosos, como a intolerância, a xenofobia, o ressentimento de classe, o excesso de conforto que cria uma sociedade incapaz de encarar a realidade, o fetiche das imagens e da cultura midiática.
— Todos os meus filmes falam da violência. É impossível não lidar com isso se você está filmando no mundo atual — disse em Cannes quando lançou A Fita Branca.
Há elementos comuns na filmografia de Haneke, como enumerou o jornalista e crítico de cinema Marcelo Miranda em um artigo publicado em Zero Hora, em 2012: "a brutalidade filmada fora de quadro, o uso do som como elemento de perturbação, a inserção de imagens de vídeo como propulsores da narração, o profundo rigor nos enquadramentos e em longos planos, a personalidade gélida dos protagonistas, a visão amarga e política para o universo retratado". O tom pessimista e o gosto pelo choque são armas de Haneke para obter "a primeira e principal" coisa que espera do espectador: uma reação. Foi o que ele disse à época da estreia de A Professora de Piano (2001, disponível no MUBI) no Festival de Cannes. Nesse filme, que recebeu o Grande Prêmio do Júri e os troféus de melhor atriz (Isabelle Huppert) e ator (Benoît Magimel), o diretor conta a história de uma professora de piano do Conservatório de Viena. Aos 40 anos, ela mora com a mãe, não bebe nem fuma, mas frequenta cinemas pornôs e peep-shows. A certa altura, inicia uma relação repleta de jogos sadomasoquistas com um jovem aluno. O diretor comentou ao jornal britânico The Independent:
— Obviamente, ela não é louca, e é isso o que a torna interessante. Em todos os meus filmes, Eu uso os extremos, sejam eles incidentes ou comportamentais, como uma forma de mostrar o que é típico em nossa sociedade. É por meio desses casos extremos que você pode representar melhor a normalidade.
Fora das telas, Michael Haneke também já causou polêmica ao criticar o movimento #MeToo, que conseguiu reunir milhares de mulheres que denunciaram abusos sexuais sofridos por elas.
— A caça às bruxas devia ter ficado na Idade Média — declarou em fevereiro de 2018. — Este novo puritanismo, imbuído de um ódio aos homens que vem na esteira do movimento #MeToo, me preocupa. Esse pré-julgamento histérico que está se propagando é nojento. As tempestades virtuais baseadas em acusações frágeis envenena a sociedade. Como artista, começo a estar confrontado pelo medo diante dessa cruzada contra qualquer forma de erotismo.
Filmes de Michael Haneke na Reserva Imovision
O Sétimo Continente (1989)
Depois de fazer seis telefilmes, Michael Haneke estreou no cinema com uma trama que ele desdobraria em alguns dos trabalhos seguintes. Acompanhamos a rotina tranquila e pouco empolgante de uma família europeia que planeja ir para a Austrália e que mantém uma rotina calma e pouco empolgante. Mas, segundo a sinopse, "há algo sinistro por trás de tudo". O Sétimo Continente também marca a estreia de personagens recorrentes na filmografia do diretor: o casal Anna e Georg, às vezes batizados de Anne e Georges (com o sobrenome Laurent aparecendo em quatro ocasiões).
Violência Gratuita (1997)
Com o título original de Funny Games (Jogos Divertidos), o filme foi objeto de desentendimentos entre os jurados do Festival de Cannes — uns aplaudiram, outros acharam incômodo demais. Foi refilmado 10 anos depois pelo próprio Haneke, então com um elenco hollywoodiano: Naomi Watts, Tim Roth e Michael Pitt.
Como escreveu o saudoso crítico Tuio Becker (1943-2008) em Zero Hora, em 1997, o diretor "preocupa-se com as consequências da violência na mídia e da mídia como produtora de violência. Usa o recurso da metalinguagem para que o espectador saiba que aquilo que ele está vendo é um filme". Lá pelas tantas, um dos dois jovens (Arno Frisch e Frank Giering) que aterrorizam uma família em férias — marido (Ulrich Mühe), mulher (Susanne Lothar) e filho pequeno — se dirige diretamente para a câmera, questionando sobre os atos brutais que estão cometendo. Somos obrigados a refletir se já chega ou se queremos mais. O espectador tem a chance de, no mínimo, parar. Aos personagens feitos de reféns e torturados, o cineasta austríaco acena com essa opção para, perversamente, refazer os caminhos traçados.
Código Desconhecido (2000)
Em uma das grandes avenidas de Paris, um incidente é a ligação entre três histórias e uma dezena de personagens: o jovem Jean joga um saco de papel em Maria, uma imigrante romena que pede esmola. Um rapaz negro aborda o garoto, e uma briga entre os dois tem início, apartada pela polícia e pela cunhada de Jean, a atriz Anne (Juliette Binoche). A romena é deportada para seu país de origem, o africano Amadou é levado à delegacia como suspeito e o branco Jean é liberado.
O filme ganhou um prêmio especial do júri em Cannes e mereceu de Roger Lerina, em ZH, o seguinte comentário: "Em Código Desconhecido, o diretor expõe a desagregação da sociedade na Europa contemporânea, onde os limites entre classes, raças e nacionalidades foram substituídos por uma zona de conflito social em permanente tensão".
O Tempo do Lobo (2003)
Trata-se de uma distopia pós-apocalíptica. A água não contaminada é escassa, e o gato precisa ser queimado. Fugindo de Paris, a família Laurent chega a sua casa de campo na esperança de encontrar refúgio e segurança, mas descobre que já está ocupada por estranhos. O elenco é encabeçado pela atriz francesa Isabelle Huppert, que trabalhou com Michael Haneke também em A Professora de Piano (2001), Amor (2012) e Happy End (2017), e inclui Béatrice Dalle, Patrice Chéreau e Anaïs Demoustier.
Caché (2005)
Ganhador do troféu de melhor diretor e dos prêmios do júri e da crítica no Festival de Cannes, Caché conta a história de uma família parisiense (interpretados por Daniel Auteuil, Juliette Binoche e o garoto Lester Makendonsky) surpreendida por fitas de vídeo que alguém deixa em sua porta. Os filmes, em princípio, mostram apenas a fachada da casa, ao longo de horas, acompanhando o movimento de quem entra e sai. A primeira fita vem sozinha; as seguintes, embrulhadas em desenhos de criança, com um personagem botando sangue pela boca. Não há pistas sobre quem manda os vídeos e por quê.
O clima vai ficando cada vez mais tenso e ameaçador. Georges, o pai, conforme escreveu o jornalista Eduardo Veras em ZH, "tem que se confrontar novamente com o passado e culpas já esquecidas. De forma latente (já que nada no filme é muito explicitado), terá de encarar o grande drama da França contemporânea: qual, afinal, é o espaço possível de convívio entre a elite branca, bem nascida, e toda a população árabe e africana que compõe a mesma nação?".
A Fita Branca (2009)
Neste filme que levou a Palma de Ouro, o prêmio da crítica e uma menção especial do júri em Cannes e concorreu aos Oscar de longa internacional e melhor fotografia (um preto e branco belo e sóbrio de Christian Berger), Haneke se dedica a examinar com seu olhar distanciado e quase malvado a gênese do nazismo, urdido pela mistura de rígidos padrões morais e caráter punitivista. Numa localidade rural alemã, às vésperas da eclosão da Primeira Guerra Mundial, crimes brutais começam a ser cometidos contra crianças e adultos, sem que se saiba o autor das crueldades, acobertadas por um véu de medo ou cumplicidade. Os fatos são narrados pelo professor do coral do vilarejo (Christian Friedel), também o protagonista da história.
Em ZH, o crítico Daniel Feix apontou que o diretor "volta-se para os rituais punitivos, consequência dos princípios naturais de severidade daqueles homens. O pastor da região, por exemplo, impõe a seus filhos o uso de uma fita branca como símbolo do ideal de manter, na vida adulta, a ingenuidade e a pureza da infância. Ainda que a referência ao nazismo seja evidente, inclusive na etiquetação das pessoas como forma de segregá-las das demais — que seria repetida por Hitler com os judeus —, Haneke disse que gostaria que seu longa fosse visto como 'um ensaio sobre o surgimento das diversas formas de terrorismo, aplicável a todas as sociedades e todos os fanatismos'".
Amor (2012)
Assim escreveu o jornalista Marcelo Perrone, em Zero Hora, quando Amor estreou nos cinemas de Porto Alegre: "Talvez seja o mais belo e corajoso filme sobre um tema em torno do qual se dá muitas voltas para não se abordar de frente — o apagar das luzes de uma relação diante da decrepitude de corpo e mente". Haneke retrata a reta final do casamento de Georges (Jean- Louis Trintignant) e Anne (Emmanuelle Riva), octogenários que vivem com conforto num amplo apartamento em Paris. Apaixonados um pelo outro, eles também são devotados à música clássica. Até que a ex-professora de piano sofre um derrame que dá início ao seu progressivo definhamento. Georges se recusa a interná-la em uma clínica e decide cuidar da mulher em casa, incorporando os elementos de um novo e mórbido ritual: remédios, papinha, fraldas geriátricas, o diálogo que se transforma em monólogo, o amor que se transforma em... outra coisa.
Amor é uma das obras mais laureadas do diretor austríaco. Ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes, o Oscar de longa internacional — concorreu também nas categorias de melhor filme, direção, atriz e roteiro original —, o Bafta (da Academia Britânica) e o Globo de Ouro. Na premiação da Academia Europeia, faturou os troféus de melhor filme, diretor, ator e atriz.