Estava faltando isso na minha lista dos melhores filmes lançados em 2021 no Brasil: um bom policial. A vaga foi ocupada, com excelência, por Nem um Passo em Falso (No Sudden Move), que estreou diretamente no HBO Max, a mais nova plataforma de streaming no país. A direção é de Steven Soderbergh, ganhador do Oscar da categoria por Traffic (2000), concorrente ao mesmo prêmio por Erin Brockovich (2000), indicado pelo roteiro original de Sexo, Mentiras e Videotape (1989) — que levou a Palma de Ouro no Festival de Cannes —, criador da trilogia iniciada por Onze Homens e um Segredo (2001) e realizador da cinebiografia em duas partes Che (2008).
Desde que, em 2017, voltou de uma aposentadoria prematura do cinema anunciada em 2011 e posta em prática em 2013, o estadunidense Soderbergh, 58 anos, não parou mais de trabalhar. Depois do seriado The Knick (2014-2015), o diretor emendou seis longas-metragens (e também assinou Mosaic, que foi exibida como um app interativo em 2017 e como uma minissérie da HBO em 2018).
Esses seis filmes trazem marcas de Soderbergh, que se caracteriza pela versatilidade no gênero e no estilo cinematográfico e por, frequentemente, aliar o entretenimento à reflexão sobre questões sociais, políticas, econômicas, ambientais/sanitárias etc. Entre os títulos, há Distúrbio (2018, fora de catálogo), terror psicológico sobre uma mulher que é perseguida por um ex-namorado e acaba internada em uma clínica psiquiátrica, onde o cineasta faz um assustador comentário acerca do sistema de saúde dos Estados Unidos — e onde filmou usando a câmera de um iPhone 7, o que se reverte em planos claustrofóbicos, ângulos distorcidos e uma atmosfera cada vez mais apavorante.
Na sequência, Soderbergh fez High Flying Bird (2019, disponível na Netflix), drama sobre basquete que quase não mostra as quadras — o foco está nos bastidores inescrupulosos do esporte, nas negociações por melhores contratos e patrocínios, um jogo em que atletas negros são peças comandadas por bilionários brancos. Depois, foi a vez de A Lavanderia (2019, em cartaz na Netflix), uma abordagem em tom de comédia, com quebra da quarta parede, sobre o escândalo dos Panama Papers: o vazamento de e-mails que expôs o universo de empresas de fachadas sediadas em paraísos fiscais usados globalmente para sonegar impostos. E, antes de Nem um Passo Falso, tivemos Let Them All Talk (2020, no HBO Max), uma comédia dramática intimista, com toques de Ingmar Bergman e Woody Allen, rodada em um transatlântico.
Nem um Passo em Falso exibe outras características de Soderbergh, a começar pelo acúmulo de funções — sob os pseudônimos de Peter Andrews e Mary-Ann Bernard, ele assina também a direção de fotografia e a edição. Trata-se de mais um filme filiado ao subgênero do roubo, no qual se inserem, além de Onze Homens e um Segredo e suas duas continuações, Irresistível Paixão (1998) e Logan Lucky (2017), o primeiro título pós-aposentadoria (indisponível no streaming). Como em todas essas obras, e também no oscarizado Traffic, no premonitório Contágio (2011) e no recente A Lavanderia, o diretor se cerca de um grande elenco, incluindo nomes recorrentes em sua filmografia: Benicio del Toro (Oscar de melhor ator coadjuvante por Traffic e premiado em Cannes como o protagonista de Che), Don Cheadle (em sua sexta parceria), Jon Hamm, David Harbour, Ray Liotta, Brendan Fraser, Kieran Culkin, o veterano Bill Duke, a jovem Julia Fox (revelada em Joias Brutas, de 2019) e o garoto Noah Jupe (de Extraordinário e Um Lugar Silencioso). E há ainda uma participação especial e não creditada de um astro que já havia trabalhado sete vezes com Soderbergh.
Escrito por Ed Solomon — roteirista responsável pela adaptação para o cinema dos quadrinhos Homens de Preto (1997) e cocriador da franquia de mágica e roubo Truque de Mestre (2013) —, Nem um Passo em Falso permite a Soderbergh revisitar o policial noir (ainda que usando cores na fotografia). O diretor já tinha flertado com o gênero em Irresistível Paixão e O Segredo de Berlim (2006) — este, sim, filmado em preto e branco. A trama se passa em 1954, em Detroit, símbolo da indústria automobilística dos Estados Unidos. Don Cheadle interpreta Curt Goynes, um gângster que, precisando de dinheiro para deixar a cidade, topa a oferta feita por Doug Jones (Brendan Fraser). Na companhia de Ronald Russo (Benicio del Toro) e Charley (Kieran Culkin), tem de agir como "babá" da família de um contador — na verdade, os Wertz viram reféns em sua própria casa enquanto Matt (David Harbour) deve ir a seu trabalho para se apossar de um documento guardado em um cofre verde por seu patrão.
O conteúdo desse documento é um dos mistérios a ser desvendado ao longo das quase duas horas de duração. Que são pontuadas pela ótima trilha sonora do compositor e DJ irlandês David Holmes (colaborador de Soderbergh em seis obras anteriores, um jazz por vezes soturno, em outras irônico. Essa música, o elenco de personagens e o peso do acaso e do erro no desenvolvimento da história remetem aos filmes dos irmãos Ethan e Joel Coen, que gostam de empregar — ou de subverter — os elementos do noir em títulos como Gosto de Sangue (1984), Ajuste Final (1990), O Homem que Não Estava Lá (2001) e Onde os Fracos Não Têm Vez (2007).
Nem um Passo em Falso é um policial que requer três coisas do espectador. A primeira delas é a ignorância: quanto mais entrarmos no escuro, tateando para conhecer os tipos apresentados e compreender os desdobramentos de cada situação, maiores serão o encanto e o impacto. Tem a ver com isso a segunda: não espere as habituais espetacularização e frequência da violência. Essa aparece quando necessária, mas de modo breve e seco. E daí vamos para a terceira: o entendimento de que este não é um simples filme de gênero. As reviravoltas estão a serviço de um discurso sócio-político-econômico. Existe uma dupla leitura para o título: os personagens principais não podem dar nem um passo em falso em suas tentativas de avançar na vida, sob o risco de colocarem tudo a perder; seus verdadeiros antagonistas nunca dão passo em falso — sabem com a palma das mãos como funciona o mundo.