Um vírus letal paralisa o bairro, depois a cidade, o país e parte do planeta. Ninguém sabe como contê-lo. O medo se alastra na mesma velocidade. Ruas ficam desertas, melancólicas. Cidades inteiras entram em quarentena e fronteiras são fechadas. Isolamento domiciliar.
O mundo afunda em uma crise financeira sem precedentes enquanto cientistas buscam métodos para debelar a doença de origem incerta que desrespeita limites geográficos. Fake news contaminam a população.
O roteiro acima, tirado de filmes como Epidemia (1995), Contágio (2011) e Flu (2013), encaixa-se na realidade imposta ao mundo pelo coronavírus. Até as 11h desta quinta-feira (2), a covid-19 havia infectado quase um milhão de pessoas e matado perto de 50 mil, sobretudo na Itália, na Espanha, nos Estados Unidos, na França, na China e no Irã.
Exageros à parte, a ficção retrata diferentes maneiras de formação e contenção de epidemias, além de dar pinceladas sobre o papel da população nesses episódios. Nos longas-metragens Epidemia e Contágio, os vírus motaba e MEV-1 têm origem animal, como provavelmente teve a covid-19. A gênese do coronavírus não está confirmada, mas há suspeitas de que tenha surgido de um desequilíbrio no hábitat de morcegos, que infectaram pangolins e passaram o vírus aos humanos, esclarece o cientista Fernando Spilki, presidente da Sociedade Brasileira de Virologia:
— O que acontece, geralmente, é que esses vírus estão estáveis na natureza, sem causar doença no seu hospedeiro. Mas a gente vai lá destruir o hábitat dos animais. Assim, espécies vivem mais perto umas das outras, forçando uma transmissão entre elas até chegar ao ser humano. Contágio retratou muito bem isso, mostrando um porco comendo o resto de banana de um morcego.
— Na busca por adaptação ao hospedeiro, o vírus sofre mutações. O hospedeiro, por sua vez, tenta se livrar e ambos vão sempre evoluindo. O grande problema é quando o vírus se adapta ao homem de tal forma que pode ser transferido entre humanos. Quando isso acontece, pode começar uma epidemia — complementa Paulo Michel Roehe, professor do Departamento de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia do Instituto de Ciências Básicas da Saúde da UFRGS.
Nem tudo tem base científica
No filme Epidemia, o dono de uma loja de animais adoece quando o macaco hospedeiro, retirado ilegalmente da floresta, o fere no braço. A cena poderia ser real, alerta Spilki, pois uma mordida ou até o contato com a saliva dos bichos é suficiente para a transmissão de doenças.
— Os animais são trazidos para a sociedade pela caça, para utilização em cultos religiosos ou para criação em cativeiro, o que pode ser fatal — pontua.
Mas nem tudo o que os roteiristas levam para o cinema tem base científica. Em O Enigma de Andrômeda (1971), um personagem arranca um pedaço de pele para se descontaminar. Roehe, que estuda vírus há mais de 40 anos, assegura que, independentemente da forma de contaminação, a atitude não faz sentido:
— Lava-se bastante o local com água e sabão para eliminar os vírus que possam estar na ferida e procura-se um médico imediatamente. Nada de automutilação. Isso não vai funcionar na vida real.
Ainda no filme Epidemia, é despendido esforço hercúleo para capturar o primata que carrega o vírus no corpo e, a partir dele, produzir o antídoto que salvaria a população. Paralelamente, um general sugere preservar o vírus para fabricação de uma arma biológica.
— É importante saber a origem, de onde o vírus veio, onde estava na natureza para estratégias de proteção futuras. Mas pegar o macaquinho para fazer a vacina não ajuda. Ela é feita de outra maneira. Só uma pessoa muito maluca teria a ideia de fabricar uma arma biológica, né? Possível é, mas o vírus fugiria de controle e em algum momento o seu próprio Exército seria atingido — observa Spilki. — A não ser que se tenha a vacina pronta, mas aí seria uma viagem muito louca.
“Contágio” tem vacina em tempo recorde
Falando em vacina, pesquisadores fabricam e distribuem uma quantidade limitada em apenas 90 dias em Contágio. Apesar de concordar com a possibilidade de produção em três meses, Roehe, da UFGRS, explica que a complexidade vem depois, na hora de testá-la, uma das tantas etapas anteriores à distribuição. Teria que injetar o vírus inativado (morto) – ou mesmo uma proteína dele – em um grupo de humanos e ver qual reação teria em comparação com outra parcela não vacinada.
— E isso leva muito tempo. Fala-se numa vacina para o coronavírus em um ano e meio, pelo menos, o que é considerado rápido. Claro, às vezes a urgência obriga que se coloque no mercado algo que não esteja 100% testado — afirma Roehe.
Spilki colabora lembrando que há outras doenças recentes, como o zika vírus que, apesar de ter surgido em 2015, ainda não tem antiviral específico.
E, para quem sempre se perguntou como são feitas essas imunizações, o professor da UFRGS explica: a forma mais tradicional de fabricá-las é injetando o vírus inativado no corpo e, assim, induzindo o organismo a montar um mecanismo de defesa. Não se faz isso com o vírus vivo, porque, obviamente, corre-se o risco de ele se multiplicar no organismo mais rápido do que a produção de anticorpos, causando doenças.
Semelhança impressionante com a realidade
Dirigido por Steven Soderbergh, Contágio reemergiu em janeiro e fevereiro deste ano por conta da semelhança que seu enredo sem zumbis nem apocalipse tem com o cenário real provocado pela covid-19. Isso, inclusive, foi elogiado por especialistas já no lançamento, em 2011. Naquele ano, recebeu boas críticas pelo roteiro tenso e inteligente, além do elenco formado por nomes como Gwyneth Paltrow, Matt Damon, Kate Winslet, Jude Law e Marion Cotillard. Recentemente, quando perguntado sobre a aproximação do filme com a realidade, o roteirista Scott Burns disse entender que “uma infecção assim era questão de tempo”.
Tanto na ficção quanto na pandemia atual, um vírus surge na China e se espalha rapidamente pelo mundo. Semelhança que também tende a ser comprovada é a de que em ambos os animais parecem desempenhar papel preponderante para a propagação da doença. No longa, tudo começou com um morcego infectado que derruba uma banana contaminada no chão de Hong Kong. A fruta é comida por um porco. O animal é abatido e preparado por um cheff de cozinha que aperta a mão de Beth Emhoff (Gwyneth Paltrow), infectando-a e dando início ao contágio. A gênese do novo coronavírus não está confirmada, mas há suspeitas de que venha de morcegos ou de pangolins.
No filme, antes da origem viral ser revelada, os espectadores são levados para dentro de um avião que voa de Hong Kong para Minnesota, nos Estados Unidos. Beth e outros dois passageiros passam mal e ela recebe cuidados do marido Mitch (Matt Damon). Assim que descem da aeronave, espalham a doença e em pouco tempo o país norte-americano inteiro está infectado. Dois dias depois, ela morre sem que os médicos encontrassem a causa. Outras pessoas começam a manifestar os mesmos sintomas. Em menos de um mês, o número de mortos chega a 2,5 milhões nos EUA e 26 milhões em todo o mundo.
Scott Burns imaginou cidades em quarentena, lojas e aeroportos fechados, profissionais de saúde com trajes especiais, pessoas com máscaras e metrópoles silenciosas. Alguns desses elementos do filme são vistos, hoje, na cidade chinesa de Wuhan, onde o surto se originou, e mesmo aqui, no Rio Grande do Sul, onde as ruas estão praticamente vazias.
Contágio mostra fake news sendo disseminadas no boca a boca. Um adepto das teorias da conspiração espalha que descobriu a cura milagrosa em um remédio produzido por meio de uma planta, que rapidamente se esgota nas farmácias (o que pode ou não ser o caso da cloroquina e da hidroxicloroquina, produtos ainda sem eficácia comprovada). No longa, o farsante logo começa a vender o medicamento sem nenhuma base científica, apelando para a paranoia de uma população já propensa a acreditar que qualquer doença foi criada pela indústria farmacêutica para enriquecer. Na vida real, as notícias falsas também proliferam. Há afirmações mentirosas de que a China poderia ter criado propositalmente a doença para impulsionar sua economia. Circula nas redes sociais, também, que a covid-19 não resiste ao calor acima de 27°C, um incentivo para que a população ingira chás quentes.
A solução inconcebível: uma bomba
Coronel do exército americano e médico-chefe do departamento de pesquisas epidemiológicas, Sam (Dustin Hoffman) investiga uma doença extremamente contagiosa e mortal que estava destruindo um acampamento militar no Zaire em 1967. A doença só não foi mais rápida do que o governo americano, que, em vez de medicar os doentes, jogou uma bomba sobre os militares. O grupamento foi aniquilado. Anos depois, a doença ressurge, agora no golden state: a Califórnia. O motaba, como o vírus é chamado na ficção, infecta a população da pequena Cedar Creek, cidade que obrigatoriamente é colocada em quarentena pelo governo. As famílias ficam em isolamento domiciliar, algo semelhante com a realidade atual. Como na pandemia pelo coronavírus, uma das formas de contração do motaba é por gotículas salivares. Epidemia (1995) mostra pessoas sendo infectadas pelo beijo, em cinemas e outros locais de aglomeração.
Estrelado também por Rene Russo, Morgan Freeman e Kevin Spacey, o filme do diretor Wolfgang Petersen entra nos bastidores das discussões sobre este vírus mortal que chega à América por conta de um macaco contrabandeado da África. O longa mostra os embates travados internamente para combater a epidemia, discussões que a população em geral jamais fica sabendo. Enquanto são feitas busca pelo animal hospedeiro, é desencadeado um plano para bombardear a cidade e encobrir novamente a existência do vírus. Por fim, o animal é encontrado e seus anticorpos ajudam na criação do antídoto que salva a população de Cedar Creek.
Outros cinco filmes
1) Flu (2013) – Moradores de Bundang, no subúrbio de Seul, começam a morrer de uma doença respiratória. No início, o vírus não recebe importância, e a população não se previne. Em pouco tempo, centenas de habitantes da região são atingidos e o caos de instaura. Enquanto isso, um especialista procura o sangue que será capaz de desenvolver a vacina contra o vírus.
2) Ensaio Sobre a Cegueira (2008) – Baseado no livro de José Saramago, o filme de Fernando Meirelles retrata um ataque viral que deixa parte das pessoas inexplicavelmente cegas. A trama serve de fio condutor para uma dura reflexão comportamental, abordando sentimentos e ações humanas como maldade, egoísmo e crueldade. Tudo pode acontecer em um mundo sem visão.
3) Eu Sou a Lenda (2007) – A população de Nova York foi dizimada por um vírus, e Robert Neville (Will Smith), um cientista, tornou-se imune à doença. Ele percorre a cidade enviando mensagens de rádio na esperança de encontrar sobreviventes. Robert é sempre acompanhado por vítimas mutantes do vírus, que aguardam o momento certo para atacá-lo. Paralelamente, ele realiza testes com seu próprio sangue, buscando encontrar um meio de reverter os efeitos do vírus.
4) Filhos da Esperança (2006) – Filme de Alfonso Cuarón, diretor de Roma e Gravidade, mostra uma epidemia que impede mulheres de engravidar. Neste contexto, uma jovem grávida é levada para um local seguro, onde cientistas possam usá-la como cobaia no desenvolvimento da cura desta doença capaz de por fim à humanidade.
5) Os 12 Macacos (1995) – Bruce Willis interpreta o personagem James Cole, um condenado do ano de 2035 que volta no tempo para descobrir a causa de um vírus que acabou com quase toda a população do planeta. Os poucos sobreviventes moram em abrigos subterrâneos. Brad Pitt está escalado no elenco como um homem neurótico que pode estar por trás da crise global. Filme é dirigido pelo britânico Terry Gilliam, ex-integrante de Monty Python.