Participo de dois grupos no Facebook sobre filmes e séries da Netflix. Funcionam como um termômetro dos interesses e dos gostos da audiência. Foi ali que percebi, por exemplo, o ame ou odeie em torno de O Poço.
Nos últimos dias, houve uma explosão de posts recomendando dois filmes produzidos na Turquia: Milagre na Cela 7 e Sadece Sen. Fiquei intrigado, afinal, a cinematografia turca não goza, no Brasil, de uma grande popularidade, e os dois títulos são exibidos apenas no idioma original – não sei se todos vocês sabem, mas pesquisas já mostraram que o brasileiro prefere ver cópias dubladas, mesmo que isso represente perder nuances da interpretação ou disparates como empregar uma voz grave a um ator de voz aguda.
Resolvi assistir aos dois longas-metragens, que, coincidentemente, são refilmagens de obras da Coreia do Sul: Milagre na Cela 7 (2019) é a versão do diretor Mehmet Ada Öztekin para um título homônimo de 2013, e Sadece Sen (2014), de Hakan Yonat, baseia-se em Always (2011). Não foi difícil entender o apelo emocional dos dois filmes, que têm feito os participantes dos grupos verterem rios de lágrimas ("Se eu assistir a mais um que me faça chorar tanto, vou ficar desidratada", escreveu uma espectadora). Ambos oferecem ao público a redenção de que todos estamos precisando nesses tempos de coronavírus, em que ameaças à saúde – pública, privada e mundial, física, mental e econômica – e restrições sociais reduzem nosso ânimo e elevam nossos níveis de estresse e ansiedade.
Milagre na Cela 7 é uma espécie de elo perdido entre dois filmes americanos: Uma Lição de Amor (o genérico nome brasileiro para I Am Sam), em que Sean Penn interpreta um pai solteiro cuja idade mental começa a ser ultrapassada pela da sua filha de sete anos; e À Espera de um Milagre, que mostra o cotidiano no corredor da morte de uma penitenciária, onde carcereiros e internos descobrem que uma alma bondosa foi injustamente condenada.
A história se passa em um vilarejo turco da década de 1980. Memo (Aras Bulut Iynemli), pai da garotinha Ova, é preso sob a acusação de matar a filha de um poderoso militar. Depois de ser espancado, seu martírio continua na cadeia, onde seus colegas de cela consideram seu crime repugnante. Do lado de fora, Ova (em doce atuação de Nisa Sofiya Aksongur) descobre que existe uma testemunha do acidente e se empenha em provar a inocência do pai.
É uma corrida contra o tempo: Memo foi sentenciado à forca. O sofrimento do protagonista e a indignação do espectador são primeiro acentuados para depois serem mitigados. É um processo de catarse com uma série de elementos tranquilizadores, inspiradores e que se conectam com o mundo atual. O vilão, por exemplo, é claramente identificado, ao contrário da invisibilidade traiçoeira do coronavírus – e esse militar, a mais alta instância de poder na trama, recusa-se a enxergar evidências, como acontece com alguns presidentes. O senso comunitário é enaltecido: só a união de esforços, sem omissões e passando por cima de diferenças (ideológicas, religiosas, econômicas etc), pode salvar Memo. E, para além da bondade, será necessário um sacrifício – o entendimento disso gera uma das sequências mais belas e impactantes do filme.
Sadece Sen é um romance que também impõe aos protagonistas e ao público uma boa dose de drama antes do alívio. Seus personagens são Ali (Ibrahim Çelikkol), vigia de um estacionamento, e Hazal (Belçim Bilgin), uma operadora de telemarketing cega. Os dois se conhecem por acaso e, claro, logo estabelecem uma conexão. O filme equilibra-se entre obviedades e surpresas. Por um lado, o ex-boxeador Ali é tentado a fazer um serviço sujo, e Hazal tem um chefe que a assedia no trabalho e até fora dele. Por outro, o passado de ambos guarda um segredo que transfigura o relacionamento.
Diferentemente de Milagre na Cela 7, que divide o andamento da trama entre uma dezena de personagens, Sadece Sen centra foco em Ali e Hazal, com poucos coadjuvantes no seu entorno. O diretor Hakan Yonat, por sua vez, é mais sutil e silencioso do que seu colega Mehmet Ada Öztekin – a trilha sonora é bem menos invasiva, os diálogos não são reiterativos e a montagem mostra-se concisa (não à toa, dura uma hora e 45 minutos, contra as duas horas e 12 minutos do outro título). Mas, assim como a história ambientada na prisão turca, o romance permite refletir sobre angústias presentes. Queremos a generosidade de Hazal, queremos o comprometimento de Ali, queremos que todos se curem e que logo, logo a gente possa estar isolados apenas por opção própria, como dois namorados em uma praia deserta.