"Existem três tipos de pessoas: as que estão em cima, as que estão embaixo e as que caem."
Esta sentença abre um dos filmes mais comentados da Netflix nos últimos dias. Uns odiaram (geralmente, por não terem entendido), outros amaram (geralmente, por terem entendido muito bem).
Trata-se de O Poço, um drama distópico espanhol realizado no ano passado que prenunciou discussões impostas aos governantes, ao empresariado e à sociedade por causa da pandemia de coronavírus.
Dirigida por Galder Gaztelu-Urrutia, a história tem ecos de O Expresso do Amanhã (2013), a versão do cineasta sul-coreano Bong Joon-ho para a história em quadrinhos francesa O Perfura Neve, na qual o que restou da humanidade está confinado em um trem – a elite nos vagões da frente, bem assistida, os pobres apinhados nos demais. O Poço também reverbera outra obra do mesmo diretor, o oscarizado Parasita (2019), tanto por misturar humor com brutalidade quanto por encenar duelos de sobrevivência para os quais os ricos nem dão bola.
No filme espanhol, Goreng (interpretado por Iván Massagué) desperta em um estranho presídio vertical, que funciona como uma metáfora nada sutil do capitalismo. São 333 níveis, cada um deles ocupado por duas pessoas – se você é bom de matemática, já percebeu que o resultado da multiplicação é 666, o número da besta. O poço do título é o local por onde chega a comida, disposta em uma ampla mesa de concreto. Quando saem da cozinha, os pratos incluem iguarias como escargot e pana cota. Já antes do nível 50, restam apenas carcaças, um punhado de arroz e umas gotinhas de vinho, talvez uma maçã escondida. Dali em diante, a miséria impera.
A associação com o mundo acuado pela covid-19 é imediata. Quem está no topo consome sem se preocupar se vai sobrar comida, álcool gel ou papel higiênico para os demais. Cada personagem representa um perfil. O cínico Trimagasi (Zorion Eguileor), por exemplo, é daqueles que simplesmente aceitam esse sistema e pegam o que conseguem para si próprio. Imoguri (Antonia San Juan) tenta provocar a solidariedade espontânea: separa dois pratos suficientes para alimentar os dois prisioneiros do andar de baixo e pede que eles façam o mesmo - ela enxerga uma verdade cristalina: o banquete servido e a riqueza gerada dão para todos, desde que a gente distribua com menos desigualdade. Lembre-se: os 26 mais ricos do planeta têm a mesma renda dos 3,8 bilhões mais pobres.
Goreng também surge como um idealista, um personagem quixotesco – não à toa, o objeto pessoal que decidiu levar para sua cela é um exemplar de Dom Quixote, e seu rosto lembra a caracterização física, pelo gravurista francês Gustave Doré (1832-1883), do cavaleiro andante criado pelo escritor espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616). Mas o protagonista não tarda a perceber que seus moinhos de vento são muito mais perigosos e hostis. Apenas pela ameaça de punição é possível fazer com que os de cima pensem nos de baixo. Abandonados e humilhados, esses últimos, não raro, acabam recorrendo à violência.
Como romper esse mecanismo cruel? Como mudar o mundo? O Poço sugere um caminho, que passa por mandar uma mensagem para quem ocupa os lugares mais altos na pirâmide social, mostra que, durante a pandemia, sacrifícios serão necessários para proteger o que temos de mais importante – a vida. Mas deixa seu final em aberto. Cabe a nós decidirmos.