Os ingleses Alex e Marcus Lewis são gêmeos univitelinos. Hoje na casa dos 50 e poucos anos, não espelham mais um ao outro como acontecia na infância e na juventude – o primeiro é mais magro e usa óculos, o segundo é mais bronzeado e tem barba. Há outra diferença fundamental. Quando tinham 18 anos, Alex sofreu um acidente de moto e perdeu quase toda a memória. Não lembrava do pai nem da mãe, não sabia que tinha uma namorada, desaprendeu até a amarrar os sapatos. A única coisa que reconhecia era o irmão. Marcus, então, passou a contar para ele sobre a família e sobre seu passado.
Ou não.
Esse é um resumo sem spoilers de Diga Quem Sou (2019), um documentário ao mesmo tempo revoltante e fascinante em cartaz na Netflix. Embora seja uma história real, quanto menos você souber dela, melhor. Porque a revolta e o fascínio são resultado das descobertas de Alex sobre um segredo familiar.
Dirigido por Ed Perkins – indicado ao Oscar de melhor curta documental por Ovelha Negra (2018) –, o filme mostra, na teoria e na prática, como as memórias são uma construção permanente, um mecanismo complexo e algo mágico. Sem referências, Alex precisou redescobrir a viver. Coisas banais, como assistir aos desenhos de Tom & Jerry na TV, foram revestidas de pompa e circunstância. Sobre a namorada, ele brinca:
— Devo ser o único homem no mundo que perdeu a virgindade duas vezes e com a mesma garota.
Mas nem tudo era ameno, como a própria estética do documentário, sombria e não raro macabra, permite entrever.
Aliás, a mise-en-scène merece destaque. Contando com pouco material de arquivo (os motivos ficarão explícitos ao longo da trama), Perkins apostou em recursos que ajudam a representar o estado de desorientação de Alex. As entrevistas com os gêmeos cinquentões foram feitas em ambientes escuros, os planos são bastante vazios, de vez em quando a câmera fica sem foco ou trêmula, os enquadramentos sugerem que há algo incômodo no passado de ambos. Os depoimentos são intercalados por fotos da família, cenas filmadas na ampla residência dos Lewis e imagens que claramente não pertencem àquela história. O embaralhamento reflete a mente de Alex, que, em algum ponto da vida, passou a questionar a veracidade das lembranças que Marcus lhe ajudou a reconstruir.
As dúvidas surgem a partir de lacunas e de interdições (e a partir daqui pode haver algum tipo de spoiler, mas nada revelador em demasia): por que os irmãos eram proibidos de entrar em um determinado cômodo? Por que não tinham direito a uma chave de casa?
As respostas vão surgindo aos poucos para nós. O impacto emocional é devastador: eis uma história de crianças sem infância, eis uma história de pais cruéis (ou, no mínimo, omissos). Quando Alex ficou amnésico, Marcus vislumbrou a possibilidade de recriar, pelo menos para o irmão, o passado do jeito que queria. De tanto mentir, ele próprio começou a acreditar que era verdade. Escondeu nos labirintos da memória os episódios traumatizantes dos quais ambos foram vítimas.
Mas quando Alex descobre em um armário brinquedos sexuais, a enxurrada não pode ser mais contida por Marcus. Os gêmeos, mais uma vez, terão de lidar com seus fantasmas.