Leigh Whannell. Como ator, este australiano de 43 anos era praticamente invisível. Só os fanáticos pelo gênero do terror vão associar seu nome a um rosto em títulos das franquias Jogos Mortais e Sobrenatural. Como diretor e roteirista, eis alguém que merece ser mais visto depois da roupagem que deu a um clássico da ficção científica em O Homem Invisível, em cartaz a partir desta quinta-feira (27) nos cinemas.
Terceiro longa-metragem dirigido por Whannell (após Sobrenatural: A Origem, de 2015, e do elogiado Upgrade, de 2018), O Homem Invisível atualiza e muda a perspectiva da história publicada em 1897 pelo escritor britânico H.G. Wells. O foco não está no cientista que descobre a fórmula da invisibilidade nem nos dilemas éticos e morais que revestem a trama, como a intoxicação pelo poder e os riscos trazidos pela impunidade. Em vez de um, temos uma protagonista. Mas não se trata de uma versão feminina, como a comédia de 1940 A Mulher Invisível. Whannell transforma seu personagem título em um símbolo dos relacionamentos tóxicos.
O filme adota o olhar da vítima, Cecilia, a esposa do gênio da óptica Adrian Griffin (referência ao Griffin do romance original). Nos primeiros minutos, assistimos a sua fuga, na calada da noite, da casa envidraçada e cheia de dispositivos de segurança em um penhasco de San Francisco, na Califórnia. Com um simples, mas engenhoso movimento de câmera, o diretor estabelece o terror que acompanhará sua protagonista. Primeiro, seguimos o ponto de vista da mulher, perscrutando nos ambientes da residência sinais de que o marido possa ter acordado. Quando a câmera faz o trajeto de volta, o ponto de vista já não é mais o dela.
Cecilia é interpretada por uma atriz talhada para o papel: Elisabeth Moss. A americana de 37 anos exibe no currículo um punhado de personagens que precisam lutar contra o abuso masculino e a anulação feminina – desde a Peggy Olson da série Mad Men, sobre o mundo da publicidade na Nova York dos anos 1960, até a Offred da versão para TV do romance distópico O Conto da Aia, The Handmaid's Tale (que já está em sua quarta temporada), passando pela detetive Robin do seriado Top of the Lake. Em O Homem Invisível, Moss usa essa bagagem a seu favor, mas revertendo nossa expectativa: ao invés de forte, destemida ou mesmo estoica, surge fragilizada. Tem medo de fazer coisas absolutamente simples, como caminhar alguns passos até a caixa de correio do refúgio onde se instalou, a casa de um amigo da irmã, o policial James (Aldis Hodge). Qualquer vulto lhe parece Adrian Griffin (Oliver Jackson-Cohen) – um homem invisível pode estar em qualquer lugar.
E um homem abusivo está em todo lugar. Mesmo depois de morto, segue projetando sua sombra.
— Ele controlava o que eu vestia, o que eu comia, como eu caminhava, até o que eu pensava — desabafa Cecilia após ser informada da morte do ex.
Quando coisas estranhas começam a acontecer, ela passa a desconfiar de que Adrian não apenas está vivo – dotado da invisibilidade, voltou a atormentá-la, a ameaçá-la, a agredi-la, a sabotá-la. A ficção, então, reflete situações tristemente comuns da vida real: Cecilia grita, mas ninguém acredita nela. Sua sanidade é posta em xeque – pela voz silenciada da personagem, muitas mulheres poderão reconhecer a prática do gaslighting, uma forma de manipulação psicológica tão sofisticada, que é difícil de denunciar:
— É isso o que ele faz: ele me faz sentir que eu sou a louca da relação!
Se e como Cecilia sairá dessa arapuca é algo que cabe ao espectador descobrir. O que dá para dizer, sem risco de cometer algum spoiler mais grave, é que, a despeito de um ato final não muito satisfatório em relação à verossimilhança, Leigh Whannell constrói a tensão com uma sutileza insuspeita – considerando que ele foi um dos roteiristas da sanguinolenta cinessérie Jogos Mortais. Haverá violência em O Homem Invisível, mas o que marca o filme é a movimentação cadenciada, porém desnorteante, da câmera, o casamento das cores frias da direção de fotografia com uma montagem elegante, que dá tempo e espaço para que o espectador perceba o perigo em cena (como o vapor da respiração em uma noite fria). Os efeitos visuais, bem eficientes, são guardados para os momentos adequados, sem exageros. E um dos grandes acertos é a trilha sonora composta por Benjamin Wallfisch, o mesmo dos dois capítulos de It – A Coisa e parceiro de Hans Zimmer em Estrelas Além do Tempo e Blade Runner 2049.
As cordas, nervosas, evocam os filmes de Alfred Hitchcock (1889-1980). A aproximação com o mestre do suspense não é aleatória: Whannell retrabalha alguns temas e elementos hitchcockianos. Há até um MacGuffin, o importante objeto insignificante, no caso, a tecnologia por trás da invisibilidade (que, no fundo, é irrelevante para o andamento da trama: poderia ser uma pílula ou um raio, por exemplo). Seu O Homem Invisível é cheio de silêncios – os enquadramentos e os cortes bastam para provocar emoção. Sua protagonista tem a vida desestruturada a ponto de precisar provar que não está louca (ou que não é culpada). Seu vilão tem a cumplicidade do público, ciente de informações que a mocinha da trama desconhece. Nesse mesmo sentido, Whannell também apela para nosso voyeurismo, marca identitária não só de Hitchcock (vide Janela Indiscreta, Um Corpo que Cai, Psicose...), mas do próprio espectador de um filme.
Três "encarnações" anteriores
O Homem Invisível (1933): diretor de Frankenstein (1931), James Whale assina esta adaptação da novela de H.G. Wells. Claude Rains interpreta o protagonista, que fica quase todo o tempo com o rosto coberto por bandanas _ os efeitos especiais da época não eram muito desenvolvidos.
Memórias de um Homem Invisível (1992): assinada por John Carpenter e estrelada por Chevy Chase e Daryl Hannah, esta comédia de ficção científica não é baseada na história de Wells, mas em romance de H.F. Saint.
O Homem Sem Sombra (2000): na versão de Paul Verhoeven, protagonizada por Kevin Bacon e Elisabeth Shue, os efeitos impressionam: quem toma o soro vai sumindo aos poucos. Primeiro, desaparecem as camadas de pele. Em seguida, sua massa muscular. Depois os órgãos, os vasos sanguíneos e, por fim, o esqueleto.