Ainda nos anos 1980, Margaret Atwood descreveu em seu livro O Conto da Aia um futuro distópico no qual as mulheres viviam oprimidas sob uma ditadura teocrática, tratadas como patrimônio do estado, sem permissão para ler ou escrever, submissas aos homens e com dois únicos objetivos em vida: engravidar e servir. Três décadas mais tarde, em 2017, a obra da canadense foi adaptada às telas na série vencedora do Emmy The Handmaid’s Tale, comandada por Bruce Miller.
Após dois anos de sucesso entre o público e a crítica — apesar da violenta segunda temporada, que dividiu os fãs — os três primeiros episódios da nova fase chegam neste sábado (15) ao Paramount+, disponível dentro do Now, a plataforma de streaming da Net. Produzidos pela Hulu, empresa sem representação no Brasil, os capítulos estrearam nos Estados Unidos em 5 de junho.
Na trama, depois de declinar da chance de deixar a República de Gilead, June Osborne (Elisabeth Moss) retorna à resistência pronta para iniciar uma revolução, libertar as mulheres e recuperar sua filha. Reuniões secretas, novos aliados, desconfiança e traição podem ser esperados dos próximos capítulos, que devem, contudo, ter menos violência.
— Muito desta temporada é sobre esperança — declarou Moss, em entrevista ao jornal britânico The Guardian. — É radicalmente importante ter isso no mundo de hoje e também para a audiência ver que existe esperança e que existe uma saída.
Já o criador do seriado, Bruce Miller, afirmou à Reuters que não deseja que "seja uma tortura assistir à série".
— É entretenimento e você quer que as pessoas sejam compelidas por isso. Você não quer que seja um remédio horrível — acrescentou.
Ainda segundo Miller, a ideia da produção é "mostrar as coisas que precisamos ver para entender aonde June está emocional e mentalmente".
— O que estou tentando fazer é contar a história de sobrevivência e vitória de June, e é uma caminhada longa e lenta.
Ficção ou realidade?
O estupro regular das aias, para garantir filhos às famílias da elite de Gilead, é um dos pontos centrais da narrativa de Atwood, que mostra como as mulheres perderam os direitos sobre seus corpos e vidas após uma crise de esterilidade ameaçar a humanidade. Em um momento em que os direitos reprodutivos das mulheres são colocados em pauta em diferentes países, os paralelos com a produção tornam-se inevitáveis.
A vestimenta das aias — com seu manto vermelho e chapéu branco — é cada vez mais vista em manifestações, dos Estados Unidos à Argentina e inclusive no Brasil. Nos EUA, em um claro trocadilho com o lema do presidente Donald Trump (“Make América Great Again”), o slogan “Tornem Margaret Atwood ficção outra vez” popularizou-se entre a oposição.
A trama conversa diretamente com uma sentença da filósofa e teórica do feminismo Simone de Beauvoir: "Basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados".
Clássico literário de uma escritora "profética"
Nascida em 1939 em Ottawa, no Canadá, e ativa intelectual e politicamente aos 79 anos, Margaret Atwood é autora de O Conto da Aia (1985) — em suas próprias palavras, seu livro "com mais probabilidade de ser incluído nas listas bibliográficas de cursos acadêmicos".
Resenhas de seu trabalho desde os primeiros livros, no início dos anos 1960, deram ao conjunto de sua obra qualificações variadas que vão de "brilhante" e "inteligente" até "provocativa" e "sombria". Foi nos últimos três anos, contudo, que um adjetivo mais exótico passou a ser pespegado na ficção de Atwood: "profética".
As interrogações de cunho feminista sobre a estrutura patriarcal presente na sociedade permeiam toda sua obra, mas dão as caras com mais força em seus primeiros romances, como A Mulher Comestível (1969) e Madame Oráculo (1976). E o futuro é um tema que Atwood, onívora leitora sem preconceitos de obras que vão de faroeste e policial à ficção científica, tratou em romances distópicos especulativos como o próprio Conto da Aia ou como na trilogia pós-apocalíptica ambiental iniciada com Oryx e Crake (2003).
É importante saber que a segunda e a terceira temporada de Handmaid's Tale ultrapassam o livro de Atwood.
Elenco de peso
Antes de ser a insubmissa Offred em The Handmaid's Tale, Elisabeth Moss já colocava o feminismo em pauta com a personagem Peggy na premiada série Mad Men, que retratou o mundo das agências de publicidade na Nova York dos anos 1960. Na trama, ela passa de uma jovem e insegura secretária de agência para uma confiante redatora-chefe. Ganhou dois prêmios SAG Awards, em 2009 e 2010.
No cinema, Moss é uma espécie de musa para Alex Ross Perry, cineasta indie americano. Ela atuou no segundo longa do diretor, Cala a Boca, Philip (2011); no terceiro, Rainha do Mundo (2015) e no último, Her Smell, que está prestes a estrear nos cinemas. Nessa nova produção, a atriz interpreta a vocalista de uma banda de punk rock envolvida em diversas relações problemáticas por conta de sua personalidade volúvel e de seu vício em álcool.
Quem contracena com ela em Handmaid's Tale é Joseph Fiennes, do romântico longa Shakespeare Apaixonado (1999). Ele faz o ameaçador Comandante Fred Waterford, peça-chave do sistema opressor de Gillead e patrão de Offred, com quem ela se vê forçada a manter relações sexuais — o condenável estupro, em sociedades democráticas. O Comandante, às vezes, parece ser um homem sábio e amigável, mas em outras ocasiões demonstra seu interesse na submissão do sexo oposto.
Handmaid's Tale também conta com Samira Wiley, a Poussey de Orange is The New Black; Alexis Bledel, de Gilmore Girls, e Yvonne Strahovski, de Dexter e O Predador.
Ambientação intrigante
É interessante o choque cultural que a série oferece. Em um momento, retrata a sociedade aberta e contemporânea em que as mulheres são reconhecidas em seus postos de trabalho e estão à vontade em relacionamentos sérios ou casuais. Em seguida, coloca elas em sufocantes trajes que anulam seu corpo e sua personalidade — além de todo o cerceamento à sua liberdade.
O seriado aposta em ambientes sombrios, e mesmo quando a trama acontece fora dos casarões das tradicionais e ortodoxas famílias de Gillead há perigo nas ruas: pessoas são mortas a céu aberto e expostas para todos verem, com direito a manchas de sangue.
Dentro dos casarões, há sempre uma luz difusa entrando pela janela, conferindo uma espécie de respiro àquela claustrofobia e talvez sinalizando algum tipo de esperança.