Por Zizo Asnis, autor do livro Transiberiana — Uma viagem de trem pelo mundo soviético
(e por outros países que não me deixaram entrar), no qual dedica um capítulo a Chernobyl.
No dia 26 de abril de 2016 a tragédia de Chernobyl completou 30 anos. Mas foi preciso esperar mais três anos e um mês para este que foi o maior acidente nuclear da história fosse verdadeiramente lembrado e revivido. O mérito da recordação não é nenhuma homenagem póstuma realizada por russos ou ucranianos, mas sim uma esmerada produção patrocinada por americanos e ingleses, naquilo que de fato mobiliza as populações hoje no planeta:
as séries de TV (ou de streaming).
O programa é uma minissérie exibida pela HBO entre maio e junho deste ano (o último episódio foi ao ar no início deste mês) com apenas cinco episódios, mas o suficiente para provocar um estrondo mundial maior do que o catastrófico acidente ocorrido em 1986 — o que não seria muito difícil pois as autoridades soviéticas na época abafaram o fato o quanto puderam.
Na série, a tragédia é vista sob diferentes ângulos: dos bombeiros e civis que sofriam com os primeiros danos provocados pela radioatividade, dos cientistas que tentavam entender o ocorrido e aplacar os efeitos devastadores, dos trabalhadores heroicos que se sacrificavam para que a extensão da hecatombe não fosse ainda maior, dos camaradas ligados ao sórdido Estado soviético que se preocupavam em conter as notícias e vigiar uns aos outros (a maioria desses personagens não é fictícia).
Aliás, os bastidores da política soviética — onde falar demais poderia garantir uma temporada na prisão (ou mesmo uma bala na cabeça) — é um atrativo extra na série. Cenas rápidas como [spoiler inofensivo neste parágrafo] a de duas mulheres conversando no telefone a respeito dos sobrinhos de um amigo em comum, que nada mais era do que uma importante troca de informação sobre dois elementos da tabela periódica utilizados para conter um incêndio, ou de um breve diálogo envolvendo um inocente casal de hóspedes que pode não ser tão inocente assim são um deleite ao espectador que sabe o que foi a KGB.
A reconstituição de época também é primorosa: mobília, papel de parede, telefones, computadores, roupas, cortes de cabelo — tudo leva aos anos 80 de um país soviético. A onda revival do mundo comunista, que começou há uns 15 anos com o filme Adeus, Lenin, de 2003, ganhou reforço com a série. Hotéis e restaurantes de cidades como Berlim ou Praga têm recriado a atmosfera pré-Muro de Berlim para que o turista possa a ter a sensação de como era viver nesses tempos poucos saudosos (ainda que alguns tenham, sim, saudades), tendência nostálgica ou não que deve aumentar.
Chernobyl, a série, vai bem mais além do que relembrar os costumes da época: relembra a própria existência de Chernobyl, a usina, e de Pripyat, a cidade mais próxima do reator nuclear e a mais afetada. Desde 2011, há na região — chamada de Zona de Exclusão de Chernobyl —, no norte da Ucrânia, um turismo controlado. Excursões guiadas (e apenas de agências credenciadas; não é possível conhecer de forma independente) partem da capital, Kiev, a 135 quilômetros, para percorrer este lugar convertido em região e cidade fantasmas.
Tive a oportunidade de visitar Chernobyl e Pripyat há quatro anos, quando escrevia o guia O Viajante Europa Oriental. O cenário é realmente avassalador. Prédios residenciais, escolas, clube, enfermaria infantil — as construções estão todas ali, e tudo com móveis, objetos, pertences pessoais da época, como se alguém os tivesse abandonado no dia de ontem.
O parque de diversões de uma cidade então que se projetava como próspera mantém os brinquedos instalados, como se alguém pudesse usufrui-los no dia de amanhã.
Inevitavelmente, a série potencializou a curiosidade sobre este infame local. E há mais produções vindo por aí: foi anunciado que a TV estatal russa está produzindo a sua própria série sobre Chernobyl, e com um ponto de vista bem discrepante — a CIA, a agência de inteligência dos EUA, teria participação direta no acidente. É esperar para ver.
Por enquanto, se pode assistir à série americana. E ler algumas obras que tratam da tragédia, na qual destaco Vozes de Tchernóbil, da bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura em 2015 (a história da esposa do bombeiro, apresentada na série, foi adaptada do seu livro). E, claro, visitar Chernobyl. Quando estive por lá, havia em Pripyat apenas o meu grupo de 11 pessoas. Hoje, sabidamente, a procura é muito maior (tours de um dia inteiro, partindo de Kiev, custam em torno de US$ 100, incluindo transporte ao local, guia em inglês e almoço). Esperamos que o governo ucraniano resista à tentação de massificar o turismo em Chernobyl, um lugar que não deveria precisar de uma série de TV para ser sabido, lembrado e tratado com respeito.