Era o ano de 2020, aquele em que o mundo parou conta da pandemia de covid-19, quando a polícia foi acionada para atuar em um caso clássico de importunação sexual. Um homem, de aproximadamente 70 anos, havia sido flagrado filmando por baixo das saias de mulheres em um supermercado. Repugnante, mas não surpreendente. O indivíduo foi preso e acabou liberado após pagar uma multa ínfima, em torno de R$ 600.
O caso de Gisèle se apresenta como um marco mundial para a luta contra abusos e violações sexuais contra as mulheres
As autoridades, contudo, prosseguiram a investigação. Nos dias que se seguiram, uma surpresa perturbadora. Os policiais apreenderam os computadores desse homem. Neles, havia cerca de 4 mil fotos e vídeos de uma mulher inconsciente sendo estuprada por ele e por dezenas de outros homens, em uma casa. A vítima era dopada com remédios.
Quem era essa mulher? A esposa e mãe dos três filhos dele.
O caso chocou o mundo e teve um desfecho judicial nessa quinta-feira, faltando uma semana para o Natal. O marido confessou à Justiça que recrutava desconhecidos para estuprar a mulher, deixando claro a eles que ela não estava consciente e que eles não deveriam tentar acordá-la.
A vítima chama-se Gisèle Pelicot. A despeito da dor, num gesto extremamente corajoso, decidiu abrir mão do anonimato no processo – proteção assegurada a quem sofre este tipo de violência – para que sua história pudesse dar força a outras mulheres violentadas.
Em uma frase que entra para a história, ela encorajou vítimas a não se sentirem constrangidas e decretou: a vergonha precisa mudar de lado. “Eu queria que todas as mulheres vítimas de estupro afirmassem: se a senhora Pelicot fez isso, nós podemos fazer.”
Além do marido de Gisèle, outros 50 homens foram condenados no episódio. Eram pais, maridos e avôs dedicados, segundo suas famílias. Entre eles, um jornalista, um bombeiro e um técnico esportivo aposentado. Todos filmados abusando de uma mulher inconsciente.
O caso de Gisèle se apresenta como um marco mundial para a luta contra abusos e violações sexuais contra as mulheres. É necessária uma reflexão urgente pela sociedade quanto à banalização do estupro já que, como observou a própria vítima, nenhum dos homens considerou errado ter relações sexuais com alguém desacordado, ninguém procurou a polícia para denunciar a barbárie.
Por fim, há de se destacar a força extraordinária dessa mulher que teve a coragem de romper o silêncio, buscar justiça e, como se fosse pouco, ainda se dispôs a encorajar todas as demais a não se calar.