* Historiador, Professor Titular de Relações Internacionais da UFRGS.
A construção do Muro de Berlim, em função da narrativa da Guerra Fria, tem sido analisada de forma simplista. Ele conteve o êxodo de orientais, mas passou também a controlar a entrada de ocidentais. Mas a razão de não haver sido construído antes merece uma reflexão e traz algumas surpresas.
A ideia de que a divisão da Alemanha era artificial é unívoca e linear. O comunismo moderno em parte surgiu na Alemanha (Marx e Engels), e a unificação e a industrialização tardias do país geraram polarização política - reforçada pela derrota na I Guerra Mundial - entre socialismo e nacionalismo. Já havia, portanto, "divisão", mas após a guerra a URSS não desejava a partilha e, mesmo depois de implantado, o regime da Alemanha Oriental (RDA) era frágil diante dos soviéticos - sempre desejou bloquear a emigração, mas Moscou era quem dava as ordens.
Quem decidiu construir o Muro de Berlim?
Se o Muro se destinava apenas a deter o êxodo oriental, por que foi construído somente 16 anos após a criação da Zona Soviética de Ocupação e 12 após a divisão formal das duas Alemanhas? Berlim Ocidental ficava encravada na RDA e era uma "pérola do Plano Marshall", pois recebeu muitos investimentos. A RDA sempre reivindicou a anexação de toda a cidade, não um muro divisório, mas, na ocasião, sua soberania não era reconhecida plenamente sequer pela URSS, que desejava um tratado multilateral de neutralização, unidade e desarmamento da Alemanha. Neste caso, a RDA teria de ser fundida numa Alemanha unida e seu partido dirigente convertido em simples partido político numa democracia liberal.
O Plano Marshall subvencionou a formação de uma cidade de classe média e de serviços (ocidental) frente a outra operária e industrial (oriental). E é preciso considerar que o Leste estava repleto de refugiados dos territórios perdidos, ali alojados temporariamente, esperando uma chance de retornar a seus lares. Isso nunca aconteceu, e as mudanças socioeconômicas nos dois lados produziram levas de refugiados rumo ao oeste. Após a terrível guerra e a derrota total do nazismo, poucos pensavam em política, e sim em buscar o meio mais fácil de sobreviver e de reconstruir suas vidas.
Assim, ainda que Berlim ocidental fosse um foco para a fuga de cérebros e para as atividades políticas e de espionagem através de uma cidade totalmente aberta, a construção do muro se deveu, sobretudo, a um fator da grande diplomacia, a Segunda Crise de Berlim (1958 - 1962). A incorporação da Alemanha Ocidental à OTAN, em 1955, e a busca de um novo equilíbrio europeu e global entre as duas superpotências reacenderam a disputa em torno da questão alemã. E Berlim representava, justamente, o nervo exposto em termos jurídico-diplomáticos. A disputa entre Kruschov e Kennedy chegou a um impasse na fracassada Cúpula de Viena, em junho de 1961. Na impossibilidade de, pelo menos, transformar Berlim (unificada) numa cidade livre e controlada pela ONU, Moscou vai autorizar a RDA a estabelecer uma fronteira (material) dentro dessa cidade que abrigava dois sistemas rivais. Era a forma de fazer com que a "sua" Alemanha fosse também reconhecida de fato e de jure.
Na noite de 13 de agosto de 1961, a milícia operária da RDA criou uma fronteira física de arame (futuro Muro), cuja passagem se tornava um ato internacional. Kennedy disse, então: "não é a melhor solução [ao problema alemão], mas ao menos se evitou a guerra". O próprio governo de Bonn (a capital ocidental) foi, de certa forma, beneficiado pela divisão do país e pela construção do muro. Pode superar o passado, se transformar em vanguarda do "Mundo Livre", recuperar sua legitimidade internacional e se livrar da esquerda doméstica.
Enquanto as pessoas simples sofriam as consequências cotidianas e psicológicas da divisão, na prática, um foco de tensão era eliminado e, alguns meses depois, como consequência da Crise dos Mísseis em Cuba, era instalado o Telefone Vermelho e tinha início uma era de distensão entre os EUA e a URSS. As duas Alemanhas aproveitaram para construir uma identidade própria em oposição "à outra", gerando legitimidade e estabilidade interna.
A política com o Muro e depois dele
A RDA teve, então, nos anos 1960, seu "milagre econômico", e sua população, melhorando o nível de vida, desenvolveu uma identidade alemã-oriental sob os auspícios do regime. Em 1972, as duas Alemanhas estabeleceram um modus vivendi (relações diplomáticas em 1974) e, em 1973, ingressaram simultaneamente na ONU. A RDA passou a ser um Estado "normal", mundialmente reconhecido.
A bem-sucedida economia do Leste, todavia, foi vítima da revolução tecnológica, do imobilismo da elite dirigente e da capitulação de Gorbachov. O líder soviético buscava obter apoio financeiro e tecnológico da Europa e o fim da corrida armamentista, em troca da renúncia ao controle sobre o leste europeu. Após o estabelecimento da convergência URSS-EUA, com os Acordos de Washington, em dezembro de 1987, a Guerra Fria acabou, e foi por isso que todos os regimes do Leste Europeu (sob controle soviético) ruíram, juntos, no segundo semestre de 1989.
A crise da RDA e a queda do Muro precipitaram a unificação. Desamparado e falido, sob a promessa da conversão subsidiada do Marco oriental em relação ao ocidental, o Leste votou pela unificação. Mas os custos desta logo fomentaram um surdo antagonismo entre os wessis e os össis (ocidentais e orientais) e o surgimento de uma (n)östalgie, a nostalgia pela vida bucólica e sem sobressaltos para o cidadão comum da RDA, desde que não contestasse abertamente o regime. Os orientais se encontraram despreparados para viver sob a cultura do mercado individualista, competitivo e consumista. O positivo da Nova Alemanha Federal é a recuperação da plena soberania e a tendência à autonomia internacional. A Alemanha é um país poderoso e deverá ser importante para o futuro equilíbrio do mundo e para a elaboração de um modelo social renovado. Mas, para tanto, antes precisará espantar seus fantasmas.