Passado o frenesi do Oscar, dá para colocar em dia filmes ignorados pela Academia de Hollywood ou lançados às vésperas da premiação. É o caso de Joias Brutas e Entre Realidades, duas estreias recentes da Netflix, o que aparentemente é o único laço entre elas. Mas é possível estabelecer mais pontos em comum.
Ambos os filmes têm um protagonista com um distúrbio mental, condição que distorce suas leituras da realidade. Por conta disso, tomam decisões e caminhos arriscados. Em Joias Brutas (Uncut Gems), Adam Sandler interpreta Howard Ratner, um joalheiro judeu de Nova York viciado em jogos de azar – aposta fortunas no fortuito, como qual time vai começar com a posse de bola em uma partida de basquete. Para cobrir suas dívidas com agiotas perigosos, Howard tenta fazer o negócio de sua vida com uma pedra preciosa contrabandeada da África, mas acaba se afundando mais ainda na areia movediça da compulsão e da mentira. Para piorar, falta-lhe suporte familiar: está em processo de separação, mas esconde isso dos filhos e dos demais parentes, e namora uma empregada de sua loja, Julia (Julia Fox), que tem mais interesse nos mimos do que nos sentimentos do sujeito.
Em Entre Realidades (Horse Girl), Alison Brie encarna Sarah, jovem e tímida vendedora acometida por pesadelos sobre clones e abduções. Ela sofre ataques de sonambulismo no apartamento que divide com outra garota. Quando não está no trabalho ou em casa, assistindo a seriados policiais com toques sobrenaturais, Sarah visita uma escola de equitação, onde nutre uma estranha relação com uma aluna adolescente. Aos poucos, descobrimos que essa menina monta o cavalo em que a protagonista praticava hipismo – daí o duplo sentido intraduzível do título original: horse girl é uma gíria americana para "garotas desajustadas e introspectivas". Como Howard, Sarah carece do apoio da família: a mãe já morreu, e o padrasto (Paul Reiser, da série Mad About You) é uma figura meio ausente.
Com histórias bastante centradas nos protagonistas, ambos os filmes dependem muito de quem os interpretam. Neste ponto, Joias Brutas e Entre Realidades se distanciam, não por causa das atuações – as duas acima da média –, mas pela badalação em torno de uma delas. Adam Sandler chegou a ser cotado ao Oscar e foi o melhor ator no Spirit Awards, troféu dedicado às produções fora dos grandes estúdios. Parece ter sido beneficiado por uma combinação de fatores: primeiro, é um notório comediante fazendo um personagem trágico, algo que costuma chamar atenção e render elogios compulsórios; segundo, a régua comparativa é baixa – a do próprio Sandler. Aqui, o astro de obras tolas e vulgares como Zohan – O Agente Bom de Corte e Cada um Tem a Gêmea que Merece demonstra um raro comprometimento com o papel, controlando seus maneirismos (mas imitando, aqui e ali, os do amigo Al Pacino). Seu carisma contaminou positivamente a recepção ao filme.
Alison Brie é bem mais jovem: tem 37 anos, contra os 53 de Sandler. Quando ela estreou, em 2006, ele já havia ido e voltado – a performance dramática de Sandler em Embriagado de Amor (2002), que talvez significasse um divisor de águas em sua carreira de comédias fuleiras, acabou por se revelar apenas um ponto fora da curva, até o advento de Joias Brutas. Atriz que se destacou em seriados como Mad Men (era a esposa de Pete Campbell, Trudy), Community e Glow, em Entre Realidades Alison dá seus primeiros passos como roteirista – coescreveu a trama com o diretor Jeff Baena. É cedo para dizer se seu desempenho será lembrado nas premiações referentes a 2020, mas, na pele de Sarah, ela consegue transmitir fragilidade sem resvalar para a autopiedade; nos faz confundir, nos diálogos, entusiasmo com delírio; e, apenas com o olhar, no máximo uma mexidinha no lábio, exibe o misto de esperança e desconsolo de sua personagem.
Por fim, Joias Brutas e Entre Realidades voltam a se aproximar por serem bem-sucedidos na tradução visual dos transtornos de seus protagonistas. No primeiro, os diretores Benny e Josh Safdie (os mesmos irmãos por trás de Bom Comportamento, de 2017) constroem uma atmosfera opressiva e asfixiante em torno de Howard Ratner, a começar por sua joalheria, um espaço pequeno e com um sistema de portas de segurança. A câmera acompanha suas andanças pelas ruas de Nova York, e a montagem ora investe em cortes rápidos e nervosos, ora deixa o plano-sequência seguir, sem sabermos no que vai dar a sucessão de burradas e azares. Ou melhor: até sabemos, afinal, nada pode dar certo se você sempre faz tudo errado, mas não estamos preparados para o como.
Em Entre Realidades, Jeff Baena, ao assumir a perspectiva de Sarah na narrativa, embaralha nossa percepção: o que estamos vendo são acontecimentos ou fantasia? O cineasta é criativo no retrato da dissociação da realidade e surpreendente no mergulho em direção aos traumas que a protagonista carrega. Tal qual Joias Brutas, a história entra em uma espiral com destino incerto – mas, enquanto no filme estrelado por Adam Sandler as coisas são concretas, no de Alison Brie há margens largas para interpretação. A que eu escolhi torna Entre Realidades uma joia ainda mais reluzente.