Antes mesmo de estrear, Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa já havia se tornado um marco no bilionário gênero dos super-heróis. Em cartaz a partir desta quinta-feira (6), este é o primeiro filme com uma equipe formada apenas por mulheres. Depois das aventuras estreladas por Vingadores, Liga da Justiça, X-Men, Esquadrão Suicida, Guardiões da Galáxia e Quarteto Fantástico – todos times majoritariamente masculinos –, será a vez de o público acompanhar o surgimento, nos cinemas, do supergrupo que, nos quadrinhos da DC Comics, atua nas ruas de Gotham City, a cidade do Batman. Não espere bom-mocismo: suas motivações nem sempre são nobres, elas matam a rodo se for preciso e, em outro fato inédito neste filão, a protagonista cheira cocaína – é por acidente, vale dizer, mas a droga faz efeito e a ajuda a resolver seus problemas. Não à toa, a classificação indicativa é 16 anos.
O empoderamento também aconteceu por trás das câmeras: o longa-metragem foi escrito por Christina Hodson (de Bumblebee, 2018) e dirigido por Cathy Yan (de Dead Pigs, 2018). As suas Aves de Rapina misturam personagens de diferentes fases da equipe criada em 1996, como uma dupla (Canário Negro e Barbara Gordon, a Oráculo e ex-Batgirl), e que já protagonizou um seriado da Warner (Birds of Prey), entre 2002 e 2003. Aparecem no filme, por exemplo, Canário Negro, que tem poderes sônicos e é interpretada por Jurnee Smollett-Bell, e Helena Bertinelli, a Caçadora (papel de Mary Elizabeth Winstead), uma ex-princesa da máfia que, como Bruce Wayne, jurou vingança depois do assassinato de seus pais. Mas a estrela nunca integrou o grupo: é a Arlequina, a enlouquecida psiquiatra Harleen Quinzel, que nasceu no desenho animado do Batman, em 1992, e que, graças à apaixonada interpretação de Margot Robbie, rendeu alguns dos raros elogios à versão cinematográfica do Esquadrão Suicida (2016).
A trama de Aves de Rapina deriva dos acontecimentos narrados naquele filme sobre supervilões recrutados pelo governo americano para salvar o mundo. O subtítulo alude a autonomia conquistada pela Arlequina como personagem, mas é, principalmente, um basta no namoro tóxico com o abusivo Coringa. Na abertura, uma divertida sequência em desenho animado, a protagonista conta sua origem, seu romance com o psicopata e o pé na bunda que Pudinzinho lhe deu.
Já na pele de Margot Robbie, Arlequina cai na fossa e na vida louca, até que decide, de forma explosiva, tornar público seu novo status de relacionamento. Há consequências: ela perde a imunidade que tinha – ninguém se atrevia a mexer com a namorada do Coringa – e passa a ser procurada tanto por policiais quanto por bandidos. Entre os primeiros, está Renée Montoya (Rosie Perez), entre os últimos, Roman Sionis, o Máscara Negra (Ewan McGregor, tirando sarro do próprio papel), e o assassino Sr. Zsasz (Chris Messina).
Os percalços e os personagens vão sendo apresentados ao espectador por Arlequina, em um recurso que remete aos primeiros filmes de Guy Ritchie: ela "para" a narrativa, dá um "rewind" e, assim, via flashbacks, mostra as conexões. Funciona, dá um frescor para a história, que não tem nada de mais – gira em torno de um diamante roubado por uma adolescente, Cassandra Cain (Ella Jay Bosco). O que não funcionou, pelo menos na exibição para a imprensa, foi a saraivada de piadas disparada pela protagonista – a primeira risada só aconteceu com uma hora de sessão.
Em meio à trilha sonora irritante e a uma certa enrolação no desenvolvimento do roteiro, saltam aos olhos alguns aspectos positivos, que incluem o caráter multiétnico (a diretora nasceu na China, Jurnee é negra, Rosie tem origem hispânica, Ella descende de coreanos e filipinos) e a ambientação contemporânea – dos cinco filmes sobre heroínas ou anti-heroínas produzidos nos últimos anos, quatro deles (Mulher Maravilha, Capitã Marvel e os inéditos Viúva Negra e Mulher Maravilha 1984) são aventuras no passado, seja distante ou recente. Por quê? No site Polygon, a jornalista Susana Polo ofereceu uma hipótese pertinente: "Remover o presente do cenário facilita o confronto com o machismo sem fazer com que os espectadores questionem suas visões de mundo. Todos nós fingimos que o sexismo institucional é uma coisa do passado".
Aves de Rapina entende que, como dizem os versos de James Brown cantados por Canário Negro na boate de Roman Sionis, "este é um mundo dos homens" – mas este mundo "não será nada, nada sem uma mulher ou uma garota". Para sobreviver, ou melhor, para vencer, essas mulheres e garotas não precisam das armas que a ficção as condicionou a usar – ao contrário do que aconteceu em Esquadrão Suicida, o filme não trata a Arlequina como um símbolo sexual, e as personagens não necessitam de pares românticos. Como disse Margot Robbie em entrevista em São Paulo, em dezembro, Aves de Rapina "é um filme sobre mulheres que estão em busca de afirmação e encontram o poder da união": como atrizes, ela e suas colegas tiveram de treinar muito suas cenas de luta (que são bem coreografadas na sua mistura de humor cartunesco e violência física), tiveram de apoiar e confiar uma nas outras; como personagens, elas descobrem (tardiamente na trama, infelizmente) que seus talentos são complementares, que trabalham melhor juntas.