Hitler pode ser engraçado? É permitido rir do homem que condenou ao sofrimento e à morte milhões de judeus? Humor e Holocausto combinam?
Perguntas como essas assaltam o espectador assim que começa Jojo Rabbit, um dos nove indicados ao Oscar de melhor filme, que está em sessões de pré-estreia e entra em cartaz na quinta-feira (6). Interpretado por Taika Waititi, também diretor e autor do roteiro adaptado, um Adolf bastante caricato dá conselhos ao personagem título, um menino alemão de 10 anos (Roman Griffin Davis, encantador). Nos estertores da Segunda Guerra Mundial, o guri está prestes a ingressar em um acampamento do Terceiro Reich para a formação da Juventude Hitlerista (um lugar que, no clima e na estética, faz lembrar os escoteiros de Moonrise Kingdom, de Wes Anderson). Lá, sob o comando de um capitão que trafega entre a melancolia e o sarcasmo, Klenzendorf (Sam Rockwell, sempre um prazer), Jojo se verá diante dos dilemas que pautam a trama: ele é, antes de tudo, uma criança ou um nazista? É uma pessoa ou uma idealização? Sua natureza é assassina ou protetora? Existe redenção mesmo em casos extremos?
Jojo Rabbit discute essas questões de maneira ousada, ainda que não inédita: a da sátira. Autodefinido como um "judeu da Polinésia", o neozelandês Taika Waititi segue uma longa tradição de paródias sobre Hitler e o nazismo. Dois dos exemplos mais conhecidos são O Grande Ditador (1940), que Charles Chaplin dirigiu e estrelou antes mesmo de os Estados Unidos entrarem na Segunda Guerra, e Primavera para Hitler (1968), de Mel Brooks. Poderíamos até colocar nessa lista o incontrolável e interminável meme surgido da cena de A Queda! (2004) em que Hitler, percebendo sua derrota, explode de raiva contra seus comandados.
Indicado ao Oscar de melhor roteiro adaptado, o filme de Waititi é baseado no romance Caging Skies (que está sendo lançado no Brasil como O Céu que nos Oprime), de Christine Leunens. Ao que consta, o cineasta de O que Fazemos nas Sombras (2014) e Thor: Ragnarok (2017) tomou uma série de liberdades em relação ao livro, a começar pela generosa injeção de diferentes tipos de humor, das piadas de texto à fisicalidade, com destaque para o timing perfeito da edição (indicada ao Oscar) e para a introdução do personagem de Adolf Hitler como o amigo imaginário de Jojo – pense em uma versão distorcida da tira em quadrinhos Calvin e Haroldo. Mas, ainda que seja carismático, o Hitler de Waititi não é desenhado como alguém com quem devemos simpatizar. À luz do que aprendemos sobre o conflito, os nazistas são ridicularizados; sua decadência militar - que obrigou crianças a irem ao front – e sua obediência cega ao Führer viram alvo de piadas, a maluquice de suas ideias sobre os judeus é realçada. Eis o absurdo do nazismo.
A mão do diretor também se faz presente no som de Jojo Rabbit: embora os cenários e os figurinos (ambos concorrentes à estatueta dourada) remetam à Alemanha dos anos 1940, o elenco fala um inglês contemporâneo, e a trilha sonora traz músicas de artistas bem posteriores, como Beatles, David Bowie e Roy Orbison. Em entrevista ao site Vulture, Waititi justificou:
— Se tratarmos de Hitler e do nazismo como uma coisa que aconteceu há 80 anos e a mantivermos dentro da "caixa histórica", então estamos assumindo que nunca poderá acontecer de novo.
Nesse sentido, é muito eficaz a sequência dos créditos de abertura, em que imagens de arquivo dos comícios de Hitler são acompanhadas por Komm Gib Mir Deine Hand, a versão em alemão de I Wanna Hold Your Hand, dos Beatles: Waititi traça um paralelo entre a beatlemania e o culto a Hitler, ambos adotados por vontade própria da população – o nazismo, vale lembrar, chegou ao poder via voto.
A idolatria do pequeno Jojo é posta em xeque quando surge o conflito dramático do romance de Leunens: o menino descobre que sua mãe, Rosie Betzler (Scarlett Johansson, em uma atuação superestimada pela indicação ao Oscar de atriz coadjuvante), está escondendo dentro de casa uma adolescente judia, Elsa (Thomasin McKenzie). A partir daí, Jojo Rabbit permite uma aproximação com A Vida É Bela (1997), de Roberto Benigni, em que um judeu se esforça para fazer seu filhinho acreditar que o campo de concentração é parte de uma grande brincadeira. Waititi acresce outras indagações aos personagens e aos espectadores: o que é a verdade? O quanto uma mentira pode ser benéfica? Sem a fantasia, como encarar a realidade? Como lidar com nossos medos e nossos desejos sem machucar os outros?
Também a partir do dilema que se estabelece na relação entre Rosie, Jojo e Elsa, o filme atreve-se a desnortear o público, oscilando entre a comédia aloprada e o drama devastador. Como exemplo, um chiste sobre clones humanos pode ser sucedido por uma cena que mostra alemães enforcados por traição. O recado é claro: os nazistas são ridículos, mas também são perigosos. A ameaça do extremismo nacionalista deve ser levada a sério, ontem e hoje.
No equilíbrio nem sempre a contento entre o humor e a contundência, Taika Waititi encontra um modo delicado e pungente de traduzir visualmente a jornada de amadurecimento de Jojo Rabbit. Repare na relação do menino com os cadarços de sapatos. Se no começo do filme ele não consegue atar os seus – é, portanto, incapaz de seguir seu próprio caminho; anda conforme o pensamento dominante –, ao final, não sem sofrer, já adquiriu habilidade suficiente para ajudar outra pessoa. Quem pode desabar no choro feito criança é o espectador, despreparado para o epílogo sem palavras, tão simples quanto significativo, amarrando trajetórias, afetos e lembranças sob o embalo de uma canção ao mesmo tempo inesperada e acertada: os versos manifestam arrebatadoramente o que os personagens estão sentindo.