Fui ver Viúva Negra (Black Widow, 2021) em uma das primeiras sessões nos cinemas de Porto Alegre, na quinta-feira (8) — nesta sexta (9), o filme entra em cartaz no Disney+, mas naquele esquema em que os assinantes da plataforma de streaming precisam pagar uma taxa adicional de R$ 69,90 (como ocorreu com Cruella). Apesar de gostar da personagem desde os quadrinhos do Demolidor da década de 1980 produzidos por Frank Miller, e de ter acompanhado sua evolução nos seis longas-metragens que sucederam sua primeira aparição, em Homem de Ferro 2 (2010), não tinha muitas expectativas em relação à aventura solo da superespiã interpretada por Scarlett Johansson. Mas, depois de dois anos inteiros de intervalo — a última estreia cinematográfica da Marvel havia sido Homem-Aranha: Longe de Casa, no início de julho de 2019 —, me surpreendi com minha própria excitação ao ver a característica apresentação da Marvel em uma tela grande e uma sala escura e ouvir sua característica música soando bem alto. O característico prenúncio de duas horas e pouco de muita ação, um tanto de comédia, algum suspense e um pouco de drama.
Adiado três vezes por causa da pandemia (o lançamento inicial seria em 30 de abril do ano passado), Viúva Negra perdeu o embalo da dupla indicação da nova-iorquina Scarlett no Oscar de 2020 (melhor atriz por História de um Casamento e melhor coadjuvante por Jojo Rabbit), mas não ficou datado. Ou melhor: já nasceu datado. Não é exatamente contemporânea a história que conta — o grosso dela se passa entre os eventos dos filmes Capitão América: Guerra Civil (2016) e Vingadores: Guerra Infinita (2018). Antes, mergulha no passado mais distante de Natasha Romanoff, a menina russa criada nos Estados Unidos ao lado da irmã, Yelena (vivida na fase adulta por Florence Pugh), pelo casal de espiões Alexei (David Harbour, o Hopper do seriado Stranger Things) e Melina (Rachel Weisz, ganhadora do Oscar de atriz coadjuvante por O Jardineiro Fiel, de 2005, e indicada na mesma categoria por A Favorita, de 2018).
É, portanto, uma obra rara no universo cinematográfico Marvel, que vem sempre jogando para a frente, desenrolando novas narrativas a partir de cada última parada, expandindo sua cronologia. Vide, por exemplo, as três séries que estrearam neste ano no Disney+ — WandaVision, Falcão e o Soldado Invernal e Loki (embora esta também revisite o passado). Também destoa por não promover um show de superpoderes, martelos mágicos, raios de energia etc. Como filme de espionagem que se preza, há perseguições motorizadas e o combate é quase sempre corpo a corpo ou com armas de fogo e facas (talvez até espadas). Algumas brigas e alguns hematomas, a propósito, vão lembrar aquelas e aqueles de Charlize Theron em Atômica (2017), mas claro que sem a mesma brutalidade nem o mesmo derramamento de sangue.
Falando em referência, Viúva Negra cita diretamente James Bond — Natasha aparece assistindo a 007 Contra o Foguete da Morte (1979), estrelado por Roger Moore. E faz viagens pelo mundo (uma cidadezinha do Ohio, nos Estados Unidos, uma base aérea em Cuba, um bairro marroquino, o interior da Noruega, ruas e apartamentos de Budapeste...) como Ethan Hunt e Jason Bourne. Com o primeiro, de Missão: Impossível, compartilha o mesmo compositor da trilha sonora, o escocês Lorne Balfe, autor da música de Efeito Fallout (2018) e dos segmentos 7 (2022) e 8 (2023) da franquia encabeçada por Tom Cruise. Com o último, Natasha Romanoff guarda outras semelhanças: treinada para ser uma assassina na temível Sala Vermelha comandada pelo general Dreykov (Ray Winstone), ela se rebelou e entrou para o time dos mocinhos. No filme, contudo, a Viúva Negra está fugindo do governo estadunidense por causa dos acontecimentos de Guerra Civil. Ao ser atacada por um misterioso supervilão capaz de imitá-la — e, por consequência, antecipar os movimentos da heroína, o que rende duelos bacanas —, Natasha acabará reencontrando a mana Yelena, que continua agindo como uma matadora de elite. É a deixa para o filme abordar, ainda que sem muita profundidade, temas como laços e mentiras familiares, traumas e redenção, a manipulação masculina e a autonomia das mulheres (um monólogo de Dreykov sobre o "recurso natural mais abundante no planeta" tem uma gravidade surpreendente no universo Marvel).
Assinado pela australiana Cate Shortland, realizadora de Salto Mortal (2004), Lore (2012) e A Síndrome de Berlim (2017), Viúva Negra é o quinto filme de super-herói com um nome feminino na direção desde que Patty Jenkins quebrou essa barreira, com Mulher-Maravilha (2017). Depois vieram Capitã Marvel (2019), codirigido por Anna Boden e Ryan Fleck, Arlequina: Aves de Rapina (2020), de Cathy Yan, e Mulher-Maravilha 1984 (2020), também de Jenkins. Não será o último: há pelo menos mais três a caminho. Em novembro, estreia Eternos, de Chloé Zhao, oscarizada por Nomadland (2020). A atriz Olivia Wilde, que estreou atrás das câmeras com o elogiado Fora de Série (2019), está desenvolvendo um projeto sobre a Mulher-Aranha. Nia DaCosta, do vindouro terror A Lenda de Candyman, comandará Capitã Marvel 2. Patty Jenkins vai fechar sua trilogia da Mulher-Maravilha, e Emerald Fennell, de Bela Vingança, foi contratada para escrever um filme da mágica Zatanna — não se sabe se também dirigirá.
Viúva Negra tem pontos em comum com os títulos anteriores, a começar pelo que salta aos olhos na combinação de elenco e direção: trata-se de mais um passo para o empoderamento feminino em um universo tão masculino, o dos super-heróis (no fundo, o dos filmes de aventura). Como Arlequina, busca caprichar no realismo coreografado das cenas de ação e despe sua protagonista de qualquer sexualização prévia - a certa altura, Yelena inclusive tira sarro das poses feitas pela irmã mais velha. Como Capitã Marvel, é a história de uma mulher que cai, mas se levanta, e que se define por si própria, não por quem ela beija ou deixa de beijar. Como Mulher-Maravilha — e aqui está um calcanhar-de-Aquiles —, já sabemos muito do que vai acontecer depois com a personagem.
A ciência do que o futuro reserva para a Viúva Negra (vocês viram Vingadores: Ultimato, né?) diminui sobremaneira a tensão pretendida nos momentos em que ela está sob perigo. Não é neste filme que ela morre. A mesma certeza não existe sobre os coadjuvantes que acabam ofuscando a protagonista — eis o pecado citado no título desta coluna. E essa dúvida, que se estende para a própria moral dos personagens, mostra-se benéfica para a construção de um suspense.
Claro que sem Natasha (e sem o talento de Scarlett Johansson) não haveria a distorcida e divertida dinâmica familiar. Mas quanto mais conhecemos Alexei, Melina e Yelena, mais queremos ficar com eles em cena. Em especial o pai, uma espécie de bonachão sanguinário, um vaidoso afetuoso, papel talhado para o carismático David Harbour, e a caçula, que permite a Florence Pugh subir um degrau importante em sua escalada para o sucesso. Depois de chamar atenção à frente de Lady Macbeth (2016), a inglesa ganhou vários prêmios de revelação por três filmes lançados em 2019: Lutando pela Família (2019), Midsommar (2019) e Adoráveis Mulheres (2019) — que também valeu uma indicação ao Oscar de melhor atriz coadjuvante. Agora, aos 25 anos, aparece em sua primeira superprodução hollywoodiana.
O amigo leitor que chegou até aqui pode estar pensando: ok, o Ticiano explicou o "pecado". Mas e o "ou não"?
Bem, para justificar a expressão celebrizada por Caetano Veloso, terei de dar uma informação que só será spoiler para quem não acompanha as notícias sobre as séries da Marvel no Disney+.
Posso ir em frente?
Aqui vai: Florence Pugh estará em Hawkeye, seriado do Gavião Arqueiro (encarnado por Jeremy Renner) com estreia prevista para o final de 2021. Ou seja: se por um lado Viúva Negra tira o holofote de Natasha Romanoff justo naquele que é o primeiro e provavelmente último filme solo da superespiã, por outro atiça o espectador e promete que veremos mais vezes Yelena impondo sua presença física (isso do alto do 1m62cm da atriz inglesa), dando marretadas verbais com sua voz grave e atravessando a tela com seus grandes olhos verdes.