Colateral (2004), em cartaz desde o dia 1º na Netflix, é o filme em que Tom Cruise, o herói da franquia Missão: Impossível e o mocinho de títulos como Top Gun (1986), Minority Report (2002) e Jack Reacher (2016), provou que pode ser um vilão. E dos bons. Ou dos maus, melhor dizendo. Chega a ser um pecado que apenas seu colega de elenco, Jamie Foxx, tenha concorrido ao Oscar, na categoria de ator coadjuvante.
O matador profissional Vincent deveria ter valido a Cruise, hoje com 58 anos, sua quarta indicação ao prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas – ele disputou a estatueta de melhor ator por Nascido em 4 de Julho (1989) e Jerry Maguire (1996) e a de coadjuvante por Magnólia (1999). A atuação não foi reconhecida nem mesmo no Globo de Ouro, que é bem mais generoso para com o astro americano – ele ganhou três vezes o troféu concedido pela imprensa estrangeira em Hollywood (graças aos três filmes citados) e foi lembrado em mais quatro ocasiões.
Dirigido por um esteta e, de certa forma, um filósofo do filme policial, Michael Mann – o realizador de Profissão: Ladrão (1981), Caçador de Assassinos (1986), Fogo Contra Fogo (1995), Miami Vice (2006), Inimigos Públicos (2009) e Hacker (2015) –, Colateral foi escolhido pelo American Film Institute (AFI) como um dos 10 melhores lançamentos daquela temporada de 2004. Na justificativa, o AFI disse que o longa-metragem é, a um só tempo, "um passeio eletrizante" e "uma meditação sombria e onírica sobre a moralidade" – o equilíbrio é providenciado pela edição de Jim Miller e Paul Rubell, indicados ao Oscar. Também enalteceu sua excursão por uma Los Angeles depois do pôr do sol, graças às novas tecnologias empregadas pelos diretores de fotografia Dion Beebe e Paul Cameron.
Toda a história se desenrola ao longo de uma noite na cidade californiana. Jamie Foxx interpreta o motorista de táxi Max, que, ao olhar para um corpo estatelado no teto de seu carro, em um beco de Los Angeles, pergunta ao passageiro que até então parecia ser um sujeito simpático:
— O que ele fez para você matá-lo?
— Só o conheci esta noite — responde Vincent, o personagem encarnado por Tom Cruise, de barba e cabelos grisalhos combinando com o terno cinza e a camisa branca.
O taxista, mais incrédulo, retruca:
— Como você atira em alguém que nem conhece?
O assassino, agora irônico, devolve:
— Eu só deveria matar as pessoas que conhecesse bem?
O diálogo sintetiza a trama de Colateral – Max terá de fazer uma corrida com cinco paradas mortíferas para Vincent – e as semelhanças e diferenças que existem entre aqueles dois homens. São dois solitários, que precisam saber detalhes da vida das pessoas: Max para se sentir vivo, Vincent para matá-las.
O duelo existencial travado pelo assassino de aluguel e seu chofer envolve temas como ética profissional, coragem e legado – um debate característico na obra de Mann, encenado também em O Informante (1999) e Ali (2001). Os desejos e as dúvidas de cada um são realçados pela paisagem lá fora, que, como já escreveu o crítico Ruy Gardnier, ex-editor da revista eletrônica Contracampo, adquire "contornos sentimentais" no cinema de Michael Mann.
Esse confronto chega a colocar o público em xeque, porque Tom Cruise conseguiu transmutar seu carisma de mocinho para o papel de vilão. Mas o foco é na jornada de transformação empreendida por Max. O roteirista Stuart Beattie diz que não foi a ideia de entrar na mente de um matador que o inspirou, mas os riscos diários de um taxista: "Peguei um táxi no aeroporto e fui conversando com o motorista. Ao chegar em casa, parecíamos velhos amigos. Mas eu poderia ser um maníaco homicida e ele nunca saberia".
Vincent embarca no táxi após um prólogo que revela a obsessão de Max pelo trabalho e seus sonhos. Também percebemos como o carro é sua zona de conforto, seu mundinho seguro: quando o motorista fecha a porta do veículo, some todo o barulho de Los Angeles. O pistoleiro também é um homem absolutamente dedicado ao que faz, mas, em contraste, ama os improvisos do jazz e estimula seu condutor a se adaptar – "Darwin, shit happens, I Ching", ele recita.
A tensão decorrente tem as marcas de Michael Mann, um cineasta muito interessado em transmitir a impressão de um momento presente em estado puro. O ápice é a sequência na abarrotada boate Fever, quase sete minutos nos quais a ação é crua, rápida, por vezes turva. Luzes e sombras, os cortes bruscos e a trilha sonora desamparam o olhar do espectador, já febril, como o nome do clube noturno sugere, diante dos múltiplos personagens envolvidos na perseguição a um duplo alvo. Tudo está a serviço da ideia, declarada pelo diretor à época, de evocar a "selvageria" que existe logo abaixo da superfície na noite de Los Angeles. É por isso que, momentos antes de chegarem ao endereço, Max e Vincent avistam três coiotes atravessando a rua. Nas palavras de Mann, os animais exibem a atitude de quem sabe que ali ainda era seu domínio e que a presença da civilização era meramente temporária.