Qualquer seriado da Islândia combina com dias frios. Afinal, o nome do país europeu quer dizer Terra do Gelo, e a temperatura máxima no verão, a estação atual, não passa dos 14°C. Mas Trapped, série policial em cartaz na Netflix, tem seu charme extra: as condições climáticas e as paisagens nevadas são personagens à parte. Tanto é que os créditos de abertura intercalam sobrevoos do característico relevo islandês, com suas montanhas e seus glaciares, e imagens microscópicas de um corpo humano, com seus sulcos e seus poros.
Criado por Baltasar Kormákur, diretor dos filmes Sobrevivente (2012) e Evereste (2015), Trapped (Ófærð, no original) já teve duas temporadas – uma em 2015, a outra em 2019 –, ambas com 10 episódios. Na primeira, que se passa ao longo de 10 dias de fevereiro (o mês mais frio do ano), o inverno tem papel de destaque. Primeiro, uma nevasca isola do resto do país a cidadezinha de Siglufjörður, ao norte. Ninguém entra, ninguém sai – estão, como diz o título, trapped, algo como encurralado em inglês. Mais adiante, seus mil e poucos habitantes serão ameaçados pela possibilidade de uma avalanche.
Mas o que realmente desestabiliza o local é a descoberta, por um pescador, de um tronco humano (daí a ligação entre topografia e anatomia na sequência de abertura). O trio principal da delegacia de lögreglan (o nome islandês para polícia) precisa deixar de lado seus assuntos particulares – o detetive Andri Olafsson (interpretado pelo excelente Ólafur Darri Ólafsson), que mora com as duas filhas pequenas na casa dos sogros, está tendo de lidar com o retorno da ex-esposa, agora acompanhada pelo novo namorado; Hinrika (Ilmur Kristjánsdóttir) é casada com um homem mais velho que gasta boa parte do tempo cultivando ou fumando maconha; e Ásgeir (Ingvar Sigurdsson)... Bem, Ásgeir passa os dias jogando xadrez no computador.
Agora, suas rotinas serão dedicadas a uma série de dúvidas e especulações: de quem é o corpo? A vítima pode ser um passageiro ou tripulante de um ferry da Dinamarca que está atracado em Siglufjörður? E o assassino, também está a bordo ou é alguém da cidade? Existe alguma relação entre o crime e um incêndio ocorrido sete anos atrás, que matou uma irmã da ex-esposa de Andri? Qual a conexão com um empreendimento comercial, um porto que chineses querem construir para encurtar a rota para a América do Norte?
Eis outro encanto de Trapped: o espectador fica, ele também, encurralado entre os mistérios e as revelações, entre os assassinatos e as reviravoltas que vão surgindo – só nos resta maratonar o seriado. E a trama conjuga de forma harmoniosa investigação policial (conduzida sem violência, ainda que as mortes sejam brutais e chocantes), segredos de família (praticamente todos os personagens escondem algo) e o pano de fundo com questões contemporâneas e universais. Se a primeira temporada aborda os efeitos da bancarrota islandesa de 2008 e o tráfico de mulheres, por exemplo, a segunda – ambientada no bem mais ameno mês de outubro (vai ter gente de manga curta!) – toca em temas como o embate entre indústria e ambiente e o recrudescimento dos movimentos neonazistas.
É um caldeirão que aquece o cenário gelado, mas o fogo nunca escapa ao controle. Em Trapped, tudo é cadenciado pelo tom calmo e analítico de Andri (em contraste com o porte de urso e a voz grave de Ólafsson) e por outra personagem à parte: a trilha sonora composta por Jóhann Jóhannsson (morto em 2018), Rutger Hoedemaekers e Hildur Guðnadóttir (a vencedora do Oscar por Coringa). As cordas proeminentes e os esparsos cânticos – uma espécie de lamento – traduzem o vento afiado e sussurrante que, não raro, impede os personagens de mostrarem sua própria cara. Sinos são como o anúncio de uma iminente tempestade de neve. A percussão indica que a avalanche emocional já chegou.
Essa música, às vezes, aparece de modo discreto – tipo um cachecol –, em outras, ganha o protagonismo de um poncho. Seja por debaixo das cenas, seja envolvendo-as, é como se fosse o frio constante, é como se fosse um passado que nunca deixa de assombrar.