Reapareceu este mês na Netflix um dos filmes mais aclamados da parceria entre o diretor Martin Scorsese e o ator Robert De Niro — e o meu preferido na exuberante carreira do cineasta: Taxi Driver (1976), que no Brasil, em vez de ser traduzido, ganhou o subtítulo Motorista de Táxi.
Desde a primeiríssima cena se percebe que estamos diante de uma obra ímpar e antológica: o táxi amarelo atravessando a fumaça, a cidade de Nova York vista sob a perspectiva distorcida do Travis Bickle encarnado por Robert De Niro, a música do grande Bernard Herrmann (o mesmo de Cidadão Kane e Psicose) alternando o soturno e o terno.
Essa foi a segunda colaboração de Scorsese, hoje com 82 anos, e De Niro, 81, depois de Caminhos Perigosos (1973) e antes de New York, New York (1977), Touro Indomável (1980), O Rei da Comédia (1982), Os Bons Companheiros (1990), Cabo do Medo (1991), Cassino (1995), O Irlandês (2019) e Assassinos da Lua das Flores (2023). Taxi Driver ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes e concorreu em quatro categorias do Oscar: melhor filme, ator, atriz coadjuvante (Jodie Foster, que tinha apenas 13 anos quando atuou) e música original, em uma indicação póstuma de Herrmann (1911-1975).
Na trama escrita por Paul Schrader, Travis Bickle é um veterano da Guerra do Vietnã que tenta se recompor existencial e socialmente dirigindo um táxi pelas madrugadas de Nova York. O contato com o submundo da cidade desperta nele o isolamento e a revolta. Cada vez mais paranoico, Travis, ao mesmo tempo, se transforma em motor e vítima de um ciclo de violência, encarnando um amoral anjo vingador que vê numa prostituta de 12 anos, Iris (Jodie Foster), a chance de redenção.
O protagonista também é fissurado por Betsy (Cybill Shepherd), que trabalha no comitê eleitoral do senador Palantine, candidato à presidência que promete mudanças sociais drásticas. Essa aproximação com a política vai ajudar o filme a discutir como pode ser tênue a linha que, aos olhos do público e da imprensa, separa um herói de um vilão.
Para além da parceria com De Niro e de ser ambientado na sua Nova York, Taxi Driver tem várias marcas do cinema de Scorsese. É a história de um homem contra todos — e a combinação da condição psicológica do personagem com a degradação do ambiente a seu redor acabou influenciando títulos como Um Dia de Fúria (1993) e Coringa (2019).
É um filme que não tem pudores quanto à exposição da violência — vide Travis Bickle, de moicano e jaqueta militar, despejando sua fúria por meio de uma pistola em uma sequência sanguinária.
Conta com um monólogo antológico do protagonista — "Are you talking to me?" (Você está falando comigo) — à frente do espelho, a exemplo de Touro Indomável e O Aviador (2004).
E traz o próprio Scorsese como ator. De barba, terno e gravata, o diretor encarna um homicida muito doido conduzido por Travis ao apartamento onde sua esposa o estaria traindo. O cineasta voltaria a aparecer em filmes como Touro Indomável, O Rei da Comédia, Depois de Horas (1985), A Época da Inocência (1993), Gangues de Nova York (2002), O Aviador e A Invenção de Hugo Cabret (2011).
A vida imita a ficção (cuidado: spoilers à frente)
Em Taxi Driver, a obsessão de Travis Bickle por Iris vai levar o personagem a tentar assassinar o senador Palantine durante um comício da campanha do político à presidência dos EUA.
Na vida real, John Hinckley Jr., que tinha 20 anos quando estreou o filme — ao qual assistiu 15 vezes —, extrapolou sua identificação com o taxista e sua obsessão por Jodie Foster. Ele escrevia cartas, telefonava e seguia a atriz pelo país. Em 1981, como forma de impressionar Foster, tentou assassinar o presidente Ronald Reagan. Acabou não sendo considerado culpado, sob a alegação de insanidade.