Há imagens que se tornam icônicas, há momentos que ficam gravados para sempre na memória, há sequências que são de encher os olhos, arrepiar os pelos ou até fazer cair o queixo.
Para respeitar o limite de 10 filmes, aqui está uma lista muito modesta de cenas que me marcaram (daria para fazer umas 10 listas: tem o tiroteio em câmera lenta de Um Tiro de Misericórdia, tem o efeito bullet time de Matrix, tem o seu Henrique cantando My Way no documentário Edifício Master, tem a pancadaria no corredor de Oldboy, tem a abertura de A Origem, tem a ação ensandecida de Mad Max: Estrada da Fúria, tem o transe à beira do fogo em Retrato de uma Jovem em Chamas, tem a descoberta do segredo de Parasita...).
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Crepúsculo dos Deuses (1950)
De Billy Wilder. Indicado a 11 Oscar — incluindo melhor filme, direção, ator (William Holden) e atriz (Gloria Swanson) — e premiado em roteiro, direção de arte em preto e branco e música, conta a história de uma veterana do cinema mudo, Norma Desmond, que contrata um jovem roteirista para ajudá-la a reconquistar o reinado. Talvez seja o mais cruel retrato dos bastidores de Hollywood. O sistema de estrelas que movimentou a fábrica de sonhos até meados dos anos 1950 é mostrado em seus estertores: atores e cineastas da velha guarda colocados de lado, roteiros originais trocados por fórmulas de sucesso. A cena emblemática é aquela em que Norma desce as escadas e, consciente ou inconscientemente alheia ao entorno, encerra um monólogo com uma frase célebre: "Ok, Sr. DeMille, estou pronta para o meu close-up". (Belas Artes à La Carte e canal Telecine do Globoplay)
O Sétimo Selo (1957)
De Ingmar Bergman. Ganhador do Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes, o filme do mestre sueco poderia "concorrer" com duas cenas: a da dança da morte e a do jogo de xadrez. Esta última, que depois foi inúmeras vezes referenciada e parodiada, resume este drama ambientado na Idade Média. Ao voltar das Cruzadas, um cavaleiro (interpretado por Max von Sydow) encontra seu país devastado pela peste negra. Para tentar salvar sua pele, o protagonista desafia a Morte (Bengt Ekerot) para uma partida de xadrez, em um exercício de racionalidade frente às grandes aflições humanas. (Foi lançado em DVD pela Versátil)
Psicose (1960)
De Alfred Hitchcock. Por natureza, cineastas e atores vivem enganando os espectadores. Neste que é apenas um de seus clássicos, o mestre do suspense fez a plateia achar que estava contando a história de uma secretária que roubou US$ 40 mil da imobiliária onde trabalhava para pagar as dívidas de seu amante, até que a famosa e fatídica cena do chuveiro nos mostrou que a história sendo contada era outra. O assassinato da personagem de Janet Leigh talvez seja uma das mortes mais marcantes de todos os tempos. Hitchcock passou uma semana filmando a cena, que dura 45 segundos e usa 70 posições diferentes da câmera. Tudo é sublinhado pelas cordas nervosas da trilha sonora composta por Bernard Herrmann. (Star+ e canal Telecine do Globoplay)
Touro Indomável (1980)
De Martin Scorsese. Em um preto e branco deslumbrante, Scorsese retrata a ascensão e a queda do boxeador Jake LaMotta (1922-2017), papel que rendeu a Robert De Niro o Oscar de melhor ator. A cena da luta pelo título contra Sugar Ray Robinson consegue ser a um só tempo linda, violenta e repugnante. Mostra a incapacidade do protagonista de reconhecer a derrota. Sustentado pelas cordas, o pugilista permite que Robinson bata até desfigurar seu rosto e jorrar sangue pelo ringue e na plateia — mas, como LaMotta provoca ao final, ele nunca caiu. Trata-se de uma aula de direção, trabalho de câmera, edição (também premiada com o Oscar) e efeitos sonoros. Touro Indomável concorreu ainda aos troféus de melhor filme, diretor, ator coadjuvante (Joe Pesci), atriz coadjuvante (Cathy Moriarty), fotografia e som. (Amazon Prime Video)
Os Intocáveis (1987)
De Brian De Palma. Mestre da narrativa visual — vide os planos-sequência, a câmera lenta, a montagem que repartia a tela em duas, o foco dividido —, o diretor estadunidense poderia ocupar sozinho esta lista (vide o banho de sangue em Carrie, o final de Um Tiro na Noite, Al Pacino dizendo "Say hello to my little friend" em Scarface, a sinuca em O Pagamento Final...).
Em Os Intocáveis, que recria a caçada do agente do FBI Eliot Ness (Kevin Costner) ao gângster Al Capone (Robert De Niro) na Chicago dos anos 1930, De Palma orquestra, com a imprescindível música de Ennio Morricone, um tiroteio antológico na estação de trem. Quase todas as suas marcas estão ali, incluindo o caráter referencial: tendo um carrinho de bebê como condutor do nosso olhar, a ação presta tributo à sequência da escadaria de Odessa em O Encouraçado Potemkin (1926), clássico de Sergei Eisenstein. (Netflix)
Cidade de Deus (2002)
De Fernando Meirelles. Podia-se vislumbrar que o filme alçaria um voo alto (foi sucesso de público e de crítica, disputou os Oscar de melhor direção, roteiro adaptado, fotografia e edição e concorreu ao Globo de Ouro de longa internacional) desde sua abertura — que, ironicamente, é estrelada por uma galinha. O samba embala um churrasco na Cidade de Deus, no Rio. O cardápio inclui frangos, que vão sendo depenados e escaldados. Uma das aves escapa do seu destino e é perseguida por um bando armado, sob o comando de Zé Pequeno (Leandro Firmino da Hora). A galinha que tenta fugir da violência e que quase é atropelada por um camburão da polícia alude à trajetória do protagonista e narrador, Buscapé (vivido por Luis Otávio quando criança e depois por Alexandre Rodrigues). É ele, um aspirante a fotógrafo profissional, quem nos guia pelas vielas de uma comunidade que foi construída para ser residência de funcionários públicos do antigo Estado da Guanabara, mas acabou virando endereço dos milhares de desabrigados pelas fortes chuvas do janeiro de 1966. Mais tarde, tornou-se um amontoado de concreto controlado por traficantes. (Paramount+ e para aluguel em Google Play e YouTube)
Herói (2002)
De Zhang Yimou. As artes marciais também poderiam reivindicar exclusividade nesta lista — desde as produções estreladas por Bruce Lee nos anos 1960 e 1970 até o combate com guarda- chuvas de Shadow (2018), passando pelas criativas e divertidas acrobacias de Jackie Chan e pelo duelo de espada no alto de uma floresta de bambu em O Tigre e o Dragão (2000). Meu escolhido foi Herói, do chinês Yimou. Na China antiga, o espadachim sem nome encarnado por Jet Li narra ao rei suas aventuras. As histórias têm como locações lagos, montanhas, florestas e desertos. Em cada um desses lugares, o vento, a água, o sol, as folhas e as árvores participam da ação — que também conta com os figurinos como um personagem à parte. (Disponível para aluguel em Amazon Prime Video, Apple TV e Google Play)
Colateral (2004)
De Michael Mann. Em Los Angeles, o assassino profissional Vincent (Tom Cruise) obriga o motorista de táxi Max (Jamie Foxx, indicado ao Oscar de ator coadjuvante) a fazer cinco paradas mortíferas. A tensão decorrente tem a assinatura de Michael Mann. O ápice é a sequência na abarrotada boate Fever, quase sete minutos nos quais a ação é crua, rápida, por vezes turva. Luzes e sombras, os cortes bruscos e a trilha sonora desamparam o olhar do espectador, já febril, como o nome do clube noturno sugere, diante dos múltiplos personagens envolvidos na perseguição a um duplo alvo. Tudo está a serviço da ideia, declarada pelo diretor à época, de evocar a "selvageria" que existe logo abaixo da superfície na noite de Los Angeles. É por isso que, momentos antes de chegarem ao endereço, Max e Vincent avistam três coiotes atravessando a rua. Nas palavras de Michael Mann, os animais exibem a atitude de quem sabe que ali ainda era seu domínio e que a presença da civilização era meramente temporária. (Netflix e Paramount+)
O Segredo dos seus Olhos (2009)
De Juan José Campanella. O vencedor do Oscar de melhor filme internacional tem como um de seus atrativos o espetacular plano-sequência (ou seja, sem cortes aparentes) de cinco minutos que, nas palavras do cineasta argentino, "consumiu dois anos de preparação, três dias de filmagem com os atores e 200 figurantes, mais nove meses de pós-produção". Ambientada nos anos 1970, a cena começa com a tomada aérea sobre um estádio de futebol lotado, onde jogam Huracán e Racing. A câmera passa pelo campo e segue em direção às arquibancadas, ocupadas por atores e figuras digitais. Chega ao protagonista, interpretado por Ricardo Darín. Em meio aos torcedores do Racing, ele identifica o suspeito, que aproveita a comemoração de um gol para fugir, iniciando uma perseguição pelo interior do estádio. Nessa fuga, no momento em que o suspeito salta de uma grande altura, pode haver uma trucagem que combinaria um novo corte na sequência com o uso de figuras digitais. Sem alternativa, o fugitivo invade o campo e acaba derrubado por um jogador. A ação se encerra com um close do suspeito caído no gramado, onde é finalmente rendido. (Amazon Prime Video e Star+)
Lovers Rock (2020)
De Steve McQueen. É o segundo dos cinco filmes que compõem a antologia Small Axe, realizada pelo cineasta britânico, autor do oscarizado 12 Anos de Escravidão (2012). Todos são ambientados na Inglaterra, entre as décadas de 1960 e 1980, e protagonizados por imigrantes negros ou descendentes daqueles que vieram de países caribenhos como Jamaica e Barbados para lidarem com situações de racismo e opressão. Lovers Rock acompanha um grupo de jovens desde os preparativos para uma festa caseira em um bairro de Londres até a manhã seguinte.
A música, predominantemente o lovers rock, subgênero do reggae para dançar coladinho, tem papel fundamental. Sobretudo Silly Games, sucesso de 1979 na voz de Janet Kay, que ocupa 10 minutos da hora e pouco de duração. Tocada no meio da noite pelo DJ, a canção é interrompida para ser continuada em uma arrepiante versão à capella por todos os personagens. Torna- se um hino, "um ritual espontâneo de conexão e resistência em um mundo hostil", como definiu Dorian Lynskey no jornal Los Angeles Times. Na muvuca, está o próprio compositor de Silly Games, Dennis Bovell, que confessou ter se emocionado com a espiritualidade da cena e se surpreendido com a transmutação dos versos românticos em versos de protesto: "Eu disse: Steve, como você viu isso? As autoridades jogando jogos tolos com as pessoas". (No momento, não está disponível no streaming)