Aos 80 anos, Brian De Palma é um dos maiores cineastas vivos dos Estados Unidos. Mas para a Academia de Hollywood ele não passa de uma nota de rodapé.
Ao contrário de seus amigos e contemporâneos Francis Ford Coppola, 82, Martin Scorsese, 78, George Lucas, 77, e Steven Spielberg, 74, o diretor e roteirista nunca concorreu ao Oscar, embora alguns de seus títulos tenham sido indicados e até premiados. O Fantasma do Paraíso (1974) e Trágica Obsessão (1976) disputaram na categoria melhor trilha sonora. Carrie, a Estranha (1976) teve Sissy Spacek e Piper Laurie na briga pelas estatuetas de melhor atriz e atriz coadjuvante. Os Intocáveis (1987) valeu a Sean Connery o troféu de ator coadjuvante e recebeu indicações a direção de arte, figurinos e música.
Se o Oscar o ignorou, o Framboesa de Ouro, infelizmente, não. O prêmio de galhofa promovido por um publicitário de Los Angeles indicou De Palma cinco vezes como pior diretor da temporada (nunca "venceu", pelo menos isso). Foram por Vestida para Matar (1980), Scarface (1983), Dublê de Corpo (1984), A Fogueira das Vaidades (1990) e Missão: Marte (2000).
De Palma tampouco é um rei das bilheterias, tipo Lucas e Spielberg. Seu único filme a chegar perto do meio bilhão de dólares mundialmente foi Missão: Impossível (1996), mas claro que a presença de Tom Cruise como protagonista e o valor afetivo da revitalização do seriado dos anos 1960 foram os chamarizes para arrecadar US$ 458 milhões. Apenas outros três de seus 29 longas-metragens lançados desde 1968 — 10 deles disponíveis no streaming (confira mais abaixo) — superaram os cem milhões: Missão: Marte (US$ 111 milhões), Os Intocáveis (US$ 106 milhões) e Olhos de Serpente (US$ 104 milhões).
Em compensação, os críticos da prestigiada revista parisiense Cahiers du Cinéma elegeram O Pagamento Final (Carlito's Way, 1993) como o filme da década de 1990 (empatado com As Pontes de Madison, de Clint Eastwood) e Guerra Sem Cortes (Redacted) como a melhor obra de 2007. Mais três longas apareceram no top 10 anual da publicação: Missão: Impossível (oitavo lugar em 1996), Olhos de Serpente (nono em 1998) e Missão: Marte (quarto em 2000). Seu cartaz na Europa inclui um Urso de Prata por Saudações (Greetings, 1968), no Festival de Berlim, e um Leão de Prata por Guerra Sem Cortes, no Festival de Veneza.
Mas também houve e há fãs fervorosos em solo estadunidense. Os renomados críticos Roger Ebert (1942-2013) e Pauline Kael (1919-2001) eram notórios defensores de seu cinema. Autor de Além da Linha Vermelha (1998) e A Árvore da Vida (2011), Terrence Malick (três indicações ao Oscar) está entre os cineastas que foram influenciados ou encorajados por ele. Quentin Tarantino (oito indicações ao Oscar e duas estatuetas conquistadas) disse, à época de seu Pulp Fiction (1994), que Um Tiro na Noite (1981) era um dos filmes que levaria para uma ilha deserta. E os diretores Noah Baumbach (três indicações ao Oscar), de A Lula e a Baleia (2005) e História de um Casamento (2019), e Jake Paltrow realizaram em 2015 o documentário De Palma, em cartaz no Google Play e no YouTube.
Sendo o biografado um cineasta que sempre se destacou pela narrativa visual — os planos-sequência, a câmera lenta, a montagem que repartia a tela em duas, o uso do split focus (o foco dividido) etc —, o filme de Baumbach e Paltrow é extremamente formal. Careta mesmo. Sentado em uma cadeira, com uma lareira às costas, o autor dos provocativos Irmãs Diabólicas (1972), Vestida para Matar, Dublê de Corpo e Femme Fatale (2002) narra sua vida e principalmente sua carreira. Desde a infância em Newark, a cidade mais populosa do Estado de New Jersey, onde nasceu em 11 de setembro de 1940, até Paixão (2012), seu último filme até então (depois ele faria Domino: A Hora da Vingança, em 2019, e hoje tem pelo menos dois projetos anunciados: Sweet Vengeance, estrelado por Wagner Moura, e Catch and Kill). É apenas Brian De Palma que fala durante todo o tempo em um enquadramento estático. Seu depoimento é intercalado com cenas das obras citadas, imagens de bastidores, fotos.
A opção estética de Baumbach e Paltrow logo se justifica. Como eles poderiam fazer jus ao sujeito que disparou Um Tiro na Noite? Ao realizador de Missão: Impossível? Ao maestro que orquestrou o tiroteio com um carrinho de bebê em Os Intocáveis?
Por falar nisso, De Palma é um diretor autoral mesmo sendo referencial. Suas citações e homenagens a clássicos de Sergei Eisenstein, Alfred Hitchcock, Michelangelo Antonioni e Francis Ford Coppola tornaram-se uma assinatura própria. Do primeiro, pegou a famosa sequência da escadaria de Odessa em O Encouraçado Potemkin (1926) para montar o clímax de Os Intocáveis. Do segundo, bebe direto e seguidamente. Trágica Obsessão tem como base Um Corpo que Cai (1958), Dublê de Corpo retoma a trama de Janela Indiscreta (1954), e Vestida para Matar é uma celebração de Psicose (1960). Por fim, Um Tiro na Noite mistura elementos de Blow-Up (1966), de Antonioni — o título original, aliás, é Blow-Out —, e de A Conversação (1974), de Coppola.
Um Tiro na Noite, que completa 40 anos no dia 24 de julho, é uma das tantas obras de De Palma que refletem sobre o próprio ofício cinematográfico. John Travolta interpreta Jack Terry, um técnico de efeitos sonoros que, sem querer, registra um acidente de carro, do qual salva uma moça encarnada por Nancy Allen (então esposa de De Palma). Ao ouvir suas gravações, o sonoplasta se descobre testemunha de um possível atentado político. A partir daí, De Palma engendra um suspense angustiante que alude a dois rumorosos episódios envolvendo a família Kennedy: o assassinato, em 1963, do presidente John F., um dos grandes traumas dos Estados Unidos (sobre o qual o diretor já havia tratado em Saudações), e o caso Chappaquiddick, em 1969, quando automóvel dirigido pelo senador Ted caiu de uma ponte em uma lagoa, provocando a morte de uma jovem acompanhante e minando suas pretensões de concorrer à presidência do país. Como se estivesse lidando com a célebre fita em que o cineasta amador Abraham Zapruder registrou os últimos momentos de JFK nas ruas de Dallas, Jack Terry combina som e imagem para reconstituir os acontecimentos daquela noite. É uma aula sobre o processo de fazer um filme.
Há outras marcas características. Com um pendor para o thriller psicológico (nos quais trabalha temas de Hitchcock: sexo, culpa, misoginia, voyeurismo, obsessão) e para a violência gráfica (não à toa, fez três antológicos filmes de gângster: Scarface, Os Intocáveis e O Pagamento Final), De Palma também tem uma sádica afeição por personagens que estão sendo manipulados, que são vítimas de conspirações. É um modo de espelhar o próprio jogo de manipulação do cinema. De fato, em muitas obras o cineasta aborda o duplo (e o ator não deixa de ser um duplo), mais um tema hitchcockiano, e a representação da verdade, ou seja, a de que a imagem, o que vemos, nem sempre corresponde à realidade; é algo forjado, como o próprio cinema.
No primeiro caso, pode-se destacar, por exemplo, as gêmeas siamesas vividas por Margot Kidder em Irmãs Diabólicas e protagonista acossado por múltiplas personalidades encarnado por John Lithgow em Síndrome de Caim (1992). No segundo, o simulacro distorcido de Hitchcock em Dublê de Corpo, no qual outros olhares se intrometem na história do ator fracassado que fica obcecado por uma vizinha, e Guerra Sem Cortes, no qual De Palma simula um documentário construído por imagens de câmeras amadoras, webcams, celulares e circuitos de vigilância, reencenando a história real de soldados americanos no Iraque que estupraram e assassinaram uma garota de 15 anos — o título original, Redacted, faz referência à censura pela qual passam documentos oficiais dos Estados Unidos antes de serem divulgados.
Esses temas levam à identidade visual de seus filmes: a angulação da câmera como sinalizador de distúrbios psicológicos; os planos-sequência que ilustram os passos ou nos colocam na posição de um voyeur; a espera e a preparação para a explosão de violência, algo equivalente às preliminares do sexo (nesse sentido, O Pagamento Final tem duas sequências impagáveis: a do jogo de sinuca ao som de El Watusi e a da perseguição no metrô); a quebra da tela ao meio para mostrar dois eventos que acontecem simultaneamente (o que pode esclarecer ou embaralhar a "verdade"); as lentes split focus diopter, que, ao manter em foco tanto personagens/objetos em primeiro plano quanto os que estão ao fundo, por um lado nos alertam para prestarmos atenção aos detalhes, por outro, ressaltam a artificialidade da imagem, já que o olho humano não consegue enxergar as coisas assim; a desconstrução e reconstrução de uma mesma cena sob diferentes pontos de vista — exemplos clássicos podem ser encontrados em Um Tiro na Noite, Olhos de Serpente, Femme Fatale e Dália Negra (2006).
Diante de um mestre do fazer cinema, Noah Baumbach e Jake Paltrow resolveram não inventar. Simplesmente ligaram a câmera e deixaram De Palma exibir sua mistura de visão clara do ofício, memória prodigiosa e franqueza cativante.
De Palma fala tudo o que cabe em uma hora e 50 minutos de filme. Fala sobre sua obsessão à primeira vista por Hitchcock e sobre como se considera seu único seguidor.
Fala sobre como seus primeiros curtas já traziam elementos marcantes e sobre como respondia à "loucura" do final dos anos 1960, pautados pela Guerra do Vietnã e pela luta dos Panteras Negras.
Fala sobre a relação conturbada com o pai (que acabaria inspirando personagens e cenas de sua filmografia) e sobre as queixas quanto à frequente violência contra mulheres em sua obra.
Fala sobre a amizade com Spielberg, Scorsese e companhia e sobre as trilhas compostas por Bernard Herrmann e por Ennio Morricone.
Fala sobre astros que comprometeram seu trabalho e sobre as parcerias com o ator William Finley (oito filmes), Robert de Niro e Al Pacino (a história que conta a respeito de Scarface lembra que improviso é um traço dos gênios).
Fala sobre o horror do Vietnã e sobre o horror do Iraque — para ele, seus filmes Pecados de Guerra (1989) e Guerra Sem Cortes representam, literalmente, o que os Estados Unidos faz nos países onde praticam intervenções militares: um estupro.
Fala sobre a ilusão cinematográfica e sobre suas decepções cinematográficas — ora com os críticos, ora com as bilheterias, ora com os estúdios.
Fala sobre suas escolhas erradas (tipo o tom de Tom Hanks em A Fogueira das Vaidades) e comemora seus acertos — ele diz ainda se emocionar com o desolador epílogo de Um Tiro na Noite e lembra que, quando exibiu O Pagamento Final pela primeira vez, pensou: "Eu não poderia fazer um filme melhor do que este".
Brian De Palma fala — e a gente escuta.
O que ver no streaming
De Palma (2015), documentário de Noah Baumbach e Jake Paltrow: Google Play e YouTube
Carrie, a Estranha (1976): Telecine e Apple TV
Vestida para Matar (1980): Apple TV
Um Tiro na Noite (1981): Google Play e YouTube
Scarface (1983): Netflix
Dublê de Corpo (1984): Apple TV
Os Intocáveis (1987): Telecine, Now, Apple TV, Google Play e YouTube
Pecados de Guerra (1989): Google Play e YouTube
A Fogueira das Vaidades (1990): Google Play e YouTube
Síndrome de Caim (1992): YouTube
Missão: Impossível (1996): Amazon Prime Video e Netflix