Publicada de modo independente entre 2017 e 2019 pelos paulistas Carlos Estefan (roteiro) e Pedro Mauro (arte), a trilogia de faroeste em quadrinhos formada por Gatilho, Legado e Redenção tornou-se um fenômeno de público (as tiragens foram rapidamente esgotadas) e ganhou até edição em francês — Renégat, a sair pela editora belga BD Must. Em 2021, as sombrias aventuras do anônimo caçador de recompensas foram reunidas em uma edição única (Pipoca & Nanquim, 260 páginas, R$ 99,90), agora em cores e com uma história extra, além de um prefácio assinado pelo roteirista italiano Gianfranco Manfredi, criador da HQ de western místico Mágico Vento.
A trilogia Gatilho faz uma homenagem aos filmes de bangue-bangue, em especial aqueles dirigidos por Sergio Leone e/ou estrelados por Clint Eastwood, como Por um Punhado de Dólares (1964), Três Homens em Conflito (1966), A Marca da Forca (1968), Era uma Vez no Oeste (1969), O Estranho sem Nome (1973), O Cavaleiro Solitário (1985) e Os Imperdoáveis (1992) — estes três últimos realizados pelo próprio Eastwood, que completa 91 anos nesta segunda-feira (31).
Na primeira parte, Gatilho, chama atenção a justaposição de imagem e palavra, o texto colocado sobre os desenhos dando um sentido irônico ou de ameaça aos personagens. Em Legado, a economia verbal permite os solos da narrativa visual de Pedro Mauro, e Carlos Estefan é habilidoso na arte de retomar o que havia sido dito mais cedo na trama, agora sob outro contexto. Redenção fecha tudo com a pompa e a circunstância que uma trilogia pede. Amarra pontas mas também desbrava caminhos não trilhados, oferece tensão mas também busca sensibilizar.
Ao longo da leitura, reverberam as palavras certeiras de Manfredi no prefácio — a morte, aqui, não é celebrada, a vingança é um prato não necessariamente frio, mas sempre indigesto, a violência não é um espetáculo, mas antes uma maldição, um ciclo, uma melodia repetida à exaustão em uma gaita de boca passada de geração a geração.
O instrumento musical é uma das tantas homenagens do quadrinho ao cinema, referências que de forma alguma são gratuitas e que têm como ponto alto o nome que batiza a cidade para onde os personagens devem ir na última parte: Eastwood. Um nome que casa perfeitamente com a paleta de cores escolhida, pois é símbolo do faroeste crepuscular reverenciado pelos autores. Por e-mail, Estefan e Mauro responderam as perguntas abaixo:
Por que fazer um faroeste? O que o gênero tem de tão especial?
Carlos Estefan — O Pedro Mauro iniciou sua carreira nos quadrinhos nos anos 1970, escrevendo e desenhando faroestes, e gostaria de voltar a esse universo quando me chamou para trabalharmos juntos. O gênero sempre foi rico e influente em diversas outras mídias, e gera um ótimo conflito para histórias. E, claro, acima de tudo, nós dois amamos faroeste.
Pedro Mauro — Esse gênero marcou muito minha infância e juventude, porque eu lia muitos gibis e assistia a todos os clássicos de cinema na época. Isso ficou na memória. A colonização do Oeste foi um período curto, porém cheio de histórias e aventuras pra serem contadas.
É nítida a inspiração nos filmes mais melancólicos do spaghetti western e nos títulos do chamado crepuscular, em especial aqueles protagonizados por Clint Eastwood, homenageado tanto na figura do estranho anônimo quanto no nome da cidade em Redenção. É o ator preferido de vocês? Por quê?
Estefan — Clint Eastwood marcou o gênero como nenhum outro ator. É quase impossível pensar em faroeste e não lembrar instantaneamente de sua figura. E não só como ator, mas também dirigindo Os Imperdoáveis, um dos grandes marcos dos filmes de faroeste de todos os tempos. Era mais do que justa uma homenagem a ele dentro da trilogia Gatilho.
Gatilho é uma história de bangue-bangue, mas não há a espetacularização nem a glorificação da violência e da morte. Poderiam falar um pouco sobre isso?
Estefan — Esse contraste é justamente o tema de toda a trilogia. O material literário produzido na época já criava uma aura de heroísmo em cima desses pistoleiros. Billy the Kid, Jesse James, Buffalo Bill, Wyatt Earp... Todos eram vistos com olhos de grandes aventureiros, tratados como se fossem lendas de uma grande história de ação. Mas a verdade é que era uma época suja, violenta. E boa parte dessas figuras eram assassinos tentando sobreviver e se dar bem. Nenhum deles tinha uma expectativa de vida alta. Imagine viver dentro dessas condições, onde a lei era feita na bala. Isso traz consequências, físicas e psicológicas. Não há glória na violência, só sofrimento.
Nos extras, Carlos Estefan diz que Gatilho permitiu projetar nos textos seu lado sombrio, "soltar monstros". É como se o tempo e o cenário do faroeste permitissem "brincar de mau" sem correr riscos, não? Inclusive o de ser interpretado como apologista da justiça pelas próprias mãos.
Estefan — Como eu vinha de um background de roteiros infantis/infantojuvenis, eu não tinha como abordar certos temas. Na época que escrevi Gatilho, o primeiro volume, eu também passava por um período mais complicado na vida. Poder entrar nesse lado mais sombrio, tanto de história quanto da minha vida pessoal, foi como uma catarse. Mas, obviamente, sem a celebração dos monstros. Apenas uma forma de lidar com eles.
Gostaria que o Pedro Mauro contasse um pouco sobre o processo de decupagem do roteiro, especialmente nas cenas de ação, quase sempre silenciosas, nas quais os desenhos são fundamentais para entendermos os passos de cada personagem e para o estabelecimento das tensões.
Mauro — Trabalhamos com um roteiro aberto, ou seja, sem marcações quadro a quadro, o que é comum nas HQs. Assim, eu fiquei mais a vontade para compor as cenas e definir o processo gráfico. Mas realmente os desenhos são fundamentais para definir a narrativa e contar uma historia, sempre atento ao roteiro, é claro. Trabalhar com expressões para passar sentimentos e tensões e dirigir uma ação é sempre um desafio, principalmente nas sequências em que não existem diálogos. Eu penso que esse trabalho na trilogia foi bem acertado.
Por que, para esta nova edição, vocês decidiram colorizar as aventuras?
Mauro — A trilogia foi concebida em preto e branco, é o meu estilo de trabalho. Mas vimos que, em uma edição definitiva de Gatilho, cabiam cores. Desde que acrescentasse na arte e ajudasse no conteúdo, na trama, como às vezes o PB não consegue passar. Por exemplo, o clima gélido do último episódio. As cores do Carlos mostram bem isso.
A HQ inédita abre vereda para uma espécie de universo Gatilho. Podemos esperar novas histórias?
Estefan — O material desenvolvido dentro da história extra era uma cena que acabamos cortando do primeiro volume, pois ele era indiferente à trama do Pistoleiro. A jornada dele está encerrada. Isso é importante tanto para o arco do personagem quanto para a gente. Por enquanto vamos trabalhar em outros materiais, outros personagens.
Quais são os quadrinhos de faroeste que você recomenda? E por quê?
Estefan — Eu nunca fui um consumidor de quadrinhos de faroeste, sempre fui mais interessado pelo cinema do gênero. Mas, do pouco que li, posso indicar sem medo a série de graphic novels do Tex e Lucky Luke (meu favorito do gênero nos quadrinhos).
Mauro — Posso passar uma lista de HQs de faroeste que eu gosto muito: Tenente Blueberry, Ken Parker, Tex, Mágico Vento e a mais recente minissérie da (editora) Bonelli, Deadwood Dick. São quadrinhos com bons enredos, muitos deles com passagens sobre fatos da época.
Por que fazer um faroeste norte-americano no Brasil? Os temas e as tramas não poderiam ser adaptados para a História e os cenários do nosso país?
Estefan — Acredito que a resposta mais adequada seria "Por que não?". Já temos ótimos quadrinhos de cangaço (o faroeste brasileiro) produzidos por aqui, a exemplo de Bando de Dois (Danilo Beyruth), Carniça (Shiko), O Cabra (Flávio Luiz). No futuro, se sentirmos a necessidade de criar uma história ambientada no Brasil, com certeza vamos produzi-la. Mas, se gostamos de um tema, uma ambientação, não vejo motivos pra não trabalhar em cima dele.