Quem me acompanha há mais tempo deve saber que, além de ver filmes e séries, leio muito quadrinhos. Quando as duas coisas se juntam, costumo ficar empolgado — vide Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008) ou a minissérie Watchmen (2019) —, mas essa mesma animação pode se transformar em frustração (como no caso de The Old Guard, de 2020).
Bem, depois de listar os melhores filmes que vi no ano que está acabando, os piores títulos da temporada e também uma, hã, série de séries novas e curtas para maratonar neste período, chegou a vez de apresentar quais foram as 20 histórias em quadrinhos lançadas em 2020 no Brasil preferidas.
Tem de tudo um pouco. De um faroeste futurista a uma comédia sobre um mundo sem homens, da adaptação de um best-seller sobre a história da humanidade à reinvenção de um conto de terror, de samurais decadentes a desertores que se travestem de mulher, de autobiografias sarcásticas a biografias contundentes, de reflexões sobre a era da pós-verdade a retratos sinceros das nossas contradições.
Não consegui ler tudo o que queria. Faltaram, por exemplo, Paracuellos, do espanhol Carlos Giménez, Laura Dean Vive Terminando Comigo, da canadense Mariko Tamaki (com arte de Rosemary Valero-O'Connell), e Berlim, do americano Jason Lutes, estes dois últimos publicados recentemente. Mas deu para fazer uma pequena volta ao mundo: são cinco autores do Brasil, quatro dos Estados Unidos, quatro da França, um da Alemanha, um da Austrália, uma do Canadá, uma da Coreia do Sul, um da Inglaterra, um de Israel (com mãos da Bélgica e da França) e um do Japão.
Vamos ao ranking (e clique nos links para saber mais sobre as HQs)!
20) East of West
No faroeste futurista escrito por Jonathan Hickman e desenhado por Nick Dragotta, a Morte desgarrou-se dos Cavaleiros do Apocalipse e está à procura de uma mulher. Nessa ciranda macabra, imbricam-se ciência e religião, política e ocultismo. (Devir, tradução de Érico Assis, dois volumes já lançados, com 152 páginas cada, R$ 55)
19) Satsuma Gishiden
Com desenhos assombrosos que parecem evocar o alemão Albrecht Dürer (1471-1528), o mestre japonês Hiroshi Hirata retrata a decadência dos samurais na segunda metade do século 18: os guerreiros tinham fama, mas, pobres, precisavam de outros empregos. (Pipoca & Nanquim, tradução de Drik Sada, em três volumes de 452 páginas cada, R$ 69,90).
18) Sapiens
Com roteiro do belga David Vandermeulen e desenhos do francês Daniel Casanave, o historiador israelense Yuval Noah Harari vira personagem nessa viagem no tempo que mostra como o Homo sapiens passou de um reles primata ao ser dominante. (Companhia das Letras)
17) Mundo Mulher
Como seria o planeta se os homens fossem extintos? Com esse mote da ficção científica, a canadense Aminder Dhaliwal fez uma comédia que dosa deboche, nonsense e doçura e que se passa em uma comunidade comandada por Gaia, a prefeita que anda sempre nua. (Conrad, tradução de Giu Alonso, 264 páginas, R$ 59,90)
16) Tetris
Para documentar a trajetória do célebre e infinito quebra-cabeças digital criado por um russo em 1984, o americano Box Brown começa nas cavernas de Lascaux, onde, 17 mil anos atrás, algum artista paleolítico registrou as primeiras representações de um jogo. (Mino, tradução de Celio Cecare, 256 páginas, R$ 69,90)
15) Beco do Rosário
Em belas aquarelas, Ana Luiza Koehler mostra como era viver na Porto Alegre do início do século 20 e discute o processo de expansão da cidade, que acentuou a desigualdade social ao marginalizar a população negra, empurrada do Centro para as periferias. (Veneta, 112 páginas, R$ 39,90)
14) Destino Adiado
A pandemia trouxe estranha atualidade para a HQ do francês Jean-Pierre Gibrat ambientada na Segunda Guerra Mundial: como o protagonista, precisamos nos retirar, nos isolar, esconder nossos afetos, inventar artimanhas para driblar a solidão. (Pipoca & Nanquim, tradução de Denise Schittine, 132 páginas, R$ 69,90)
13) Crianças Selvagens
Expoente da coleção Narrativas Periféricas, a obra do paulista Gabriel Brito, o Gabú, olha para a infância desprotegida, vítima da negligência ou do abandono familiar e desamparada também pelo Estado, que vê essas crianças apenas como marginais em potencial. (Mino, R$ 35)
12) Reanimator
O paraibano Juscelino Neco reinventa um conto de H.P. Lovecraft (1980-1937) e um filme B de 1985 nesta jornada de sexo, violência e muitas excreções protagonizada por um porco lascivo e por um rato que queria acordar os mortos. (Veneta, 152 páginas, R$ 54,90)
11) Histórias Brilhantes
Em um ano com tantos lançamentos assinados por Alan Moore (como as geniais tiras cômicas de Maxwell, o Gato Mágico), destaque para esta coletânea com histórias de 1986 a 2003, em que o roteirista exercita estilos narrativos e seus temas característicos. (Mythos, tradução de Octavio Aragão, 172 páginas, R$ 59,90)
10) Degenerado
Vencedora do Festival de Angoulême, a obra da francesa Chloé Cruchaudet reconstitui, com liberdades poéticas, a história de um desertor da Primeira Guerra Mundial que se traveste de mulher para viver clandestinamente em Paris na companhia da esposa. (Nemo, tradução de Renata Silveira, 192 páginas, R$ 69,80)
9) Péplum
Até então inédito no Brasil, o francês Blutch flagra personagens vivendo no extremo para alcançar o que entendem por amor nesta obra, ambientada no Império Romano das primeiras décadas d.C., sobre um rapaz obcecado por uma misteriosa mulher congelada. (Veneta, tradução de Alexandre Barbosa de Souza, 160 páginas, R$ 79,90)
8) Aprendendo a Cair
De forma ficcional e comovente, o alemão Mikael Ross retrata o cotidiano de Neuerkerode, uma vila nascida na Baixa Saxônia, em 1868, para abrigar crianças com algum tipo de deficiência — física ou mental. Hoje, é um símbolo de inclusão social. (Nemo, tradução de Renata Silveira, 128 páginas, R$ 59,90)
7) Parece que Piorou
Gaúcha de Rio Grande radicada em São Paulo, Bruna Maia não poupa ninguém nesta série de cartuns e HQs sobre ilusões, desencantos e contradições: conservadores e esquerdistas, feministas e machistas, veganos e consumistas, jovens mimados e "mulherões da porra". (Companhia das Letras, 176 páginas, R$ 69,90)
6) Mau Caminho
O australiano Simon Halsemann estreia no Brasil com as desventuras da bruxa deprimida Megg, de seu namorado, o gato preguiçoso Mogg, e do Lobisomem Jones, o amigo com quem dividem a casa, aflições, drogas, orgias, podridão e uma insuspeitada sensibilidade. (Veneta, tradução de Diego Gerlach, 176 páginas, R$ 114,90)
5) Prof. Fall
A partir da obsessão do protagonista pelo suicídio de um ex-mercenário, os franceses Tristan Perreton e Ivan Brun abordam temas que vão da depressão e do consumismo às heranças do passado colonialista, o que inclui racismo, machismo e exploração. (Veneta, tradução de Maria Clara Carneiro, 176 páginas, R$ 84,90)
4) A Solidão de um Quadrinho Sem Fim
Com sarcasmo, o americano Adrian Tomine expõe as pequenas crueldades do meio em que atua e a fragilidade de seu ego, transformando o relato autobiográfico de um quadrinista em uma reflexão ilustrada das angústias e também das alegrias da vida adulta. (Nemo, tradução de Érico Assis, 168 páginas, R$ 69,80)
3) Jeremias: Alma
Os autores Rafael Calça e Jefferson Costa expandem o debate sobre racismo iniciado em Pele (2018), premiado com o Jabuti. No novo volume da coleção Graphic MSP, o personagem negro da Turma da Mônica discute o apagamento da memória e da história dos africanos trazidos à força para o Brasil. (Panini, 96 páginas, R$ 44,90 na versão capa dura)
2) Grama
Equilibrando delicadeza e contundência, a sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim conta a história real de uma mulher vendida pela própria família na infância e forçada à escravidão sexual pelo exército japonês, na época da Segunda Guerra Mundial. (Pipoca & Nanquim, tradução de Jae Hyung Woo, 488 páginas, R$ 79,90)
1) Sabrina
O desaparecimento da personagem-título é o ponto de partida para o americano Nick Drnaso se debruçar sobre a era da pós-verdade, sobre a política da desinformação e sobre teorias conspiratórias, terrores e vícios potencializados pelas redes sociais. (Veneta, tradução de Érico Assis, 208 páginas, R$ 119,90)
Hors-concours: Berlim
Com quase 600 páginas, produzidas ao longo de duas décadas, a obra do americano Jason Lutes sobre a ascensão do fascismo na Alemanha dos anos 1920 chegou às minhas mãos nesta terça-feira (29). Por mais que a narrativa pareça eletrizante, a julgar pelo seu início, não daria tempo de eu ler adequadamente para incluir Berlim na lista dos melhores quadrinhos do ano. Mas também não poderia deixar de citá-lo aqui. (Veneta, tradução de Alexandre Boide, 592 páginas, R$ 139,90)