The Old Guard – estrelado por Charlize Theron e lançado na sexta-feira (10) pela Netflix – me fez lutar contra o sono duas vezes. Venci, mas tive de convencer a mim mesmo, como se eu fosse eterno, de que aquelas duas horas e cinco minutos não me fariam falta na vida.
Pior é que, no papel, The Old Guard tinha potencial para ser um bom filme. Como o recente Resgate e os seriados The Umbrella Academy e Locke & Key, a trama é baseada em uma história em quadrinhos – o gibi homônimo é escrito pelo americano Greg Rucka (que assina o roteiro da adaptação cinematográfica) e desenhado pelo argentino Leandro Fernandez.
Os personagens principais, que são guerreiros imortais condenados à solidão (o único relacionamento duradouro possível é entre eles mesmos), aludem a uma cultuada obra do cinema dos anos 1980, Highlander, com uma pitada de um popular super-herói – como o mutante Wolverine, dos X-Men, são suscetíveis à dor, mas têm um fator de cura que regenera em instantes fraturas expostas e sofrem a ameaça de virarem cobaias de inescrupulosos experimentos científicos.
A ação, por sua vez, dá-se em cenários como Marrocos, Sudão do Sul, o interior da França e Londres, além de permitir sonhar com viagens a guerras do passado, como as Cruzadas, na Idade Média, e as Napoleônicas, no início do século 19.
The Old Guard também é antenado com as questões de representatividade: marca a estreia de uma diretora negra, Gina Prince-Bythewood (do drama A Vida Secreta das Abelhas, 2008), à frente de uma adaptação de HQ; tem duplo protagonismo feminino (a oscarizada sul-africana Charlize divide as atenções com a jovem afro-americana Kiki Layne, de Se a Rua Beale Falasse) em um gênero costumeiramente dominado por homens; e traz, entre os heróis, um casal gay.
Mas todas essas boas intenções e boas ideias resultaram em um filme fraco em praticamente todos os aspectos.
Há um par de diálogos interessantes sobre a curiosa condição dos imortais. Quando Andrômaca, a Andy (interpretada por Charlize Theron), Booker (o belga Matthias Schoenaerts, protagonista de Kursk), Joe (o holandês Marwan Kenzari) e Nicky (o italiano Luca Marinelli, melhor ator no Festival de Veneza por Martin Eden) recrutam a militar Nile (Kiki Layne), ela pergunta se eles são bons ou maus.
— Depende do século — responde Joe.
— Nós lutamos pelo que acreditamos estar certo — acrescenta Nicky.
Resume-se a isso o componente, digamos, político, que poderia render conversas interessantes sobre a volatilidade do heroísmo – algo, por sinal, bastante pertinente nestes tempos de estátuas derrubadas. Mas ok, este é para ser um filme de ação e fantasia.
Pois bem: a ação revela-se absolutamente genérica – assim como as atuações, diga-se de passagem, com a desonrosa exceção de Harry Melling (O primo Duda Dursley na franquia Harry Potter), bastante caricato na pele do vilão, um bilionário farmacêutico. Nenhuma cena se destaca, nenhuma empolga – com a exceção, agora honrosa, do duelo corpo a corpo de Andy e Nile em um avião. Sequer existe algum sopro de criatividade nas coreografias, muito ao contrário do que nos oferece Arlequina e as Aves de Rapina (para citar outro filme de 2020 baseado em quadrinhos que também levanta a bandeira da representatividade). Ou do que a própria Charlize Theron mostrou em Atômica (mais uma HQ vertida em filme). Ou do que se viu em Fúria Feminina (o representante do Vietnã na corrida ao Oscar 2020), que, como o título já diz, conta com uma protagonista craque na arte da pancadaria.
Aliás, diferentemente de Arlequina e Atômica, em que a trilha sonora foi escolhida a dedo para pontuar as sequências de luta ou tiroteio, em The Old Guard parece que alguém ligou o modo aleatório em uma playlist de música de elevador.
A mitologia em torno dos imortais é pouco explorada. Talvez porque já se planejava, de antemão, que este seria o primeiro filme de uma série (como o epílogo deixa antever). Talvez por restrições orçamentárias – é por meio de um painel com fotos que se revela a participação de Andy e sua turma em eventos como a Guerra Civil Americana, no século 19, e a Segunda Guerra Mundial. Talvez por pura preguiça do roteiro.
Atenção: spoilers no parágrafo abaixo.
É preguiça, ou desleixo, o que parece explicar o modo como é trazido à tona e depois abandonado um episódio crucial para entender a jornada dramática de Andy. (Eu avisei que tinha spoilers, então, continue por conta e risco.) Séculos atrás, quando ainda era solitária no mundo, ela conheceu outra guerreira imortal, a oriental Quynh (vivida, veja só, pela atriz de Fúria Feminina, Van Veronica Ngo). Na Inglaterra medieval, as duas acabaram capturadas e queimadas vivas. Mas, como não morriam, seus captores tiveram uma brilhante – e horripilante – ideia: construíram um sarcófago de ferro para ser depositado no fundo do mar, onde elas se afogariam e ressuscitariam em uma agonia eterna. Só que os gênios afundaram apenas Quynh! Eles poderiam ter resolvido tudo ali, mas daí não teríamos mais Andy nem filme.
Fim dos spoilers.
Bom, depois de Andy recordar desse sofrimento, na metade do filme, nunca mais se faz referência ao assunto. Seu pivô ressurge apenas em uma cena pré-créditos finais, o fatídico gancho para um próximo filme que pode elucidar essa e outras questões – mas que não contarão com a minha audiência. Não sou guerreiro para encarar outra bomba de tédio, nem sou imortal para poder gastar mais tempo com The Old Guard.