A história de Romeu e Julieta se tornou o arquétipo de um jovem casal de amantes cuja inocência é esmagada pelo ódio do meio circundante. No caso da peça clássica de Shakespeare, o ódio em questão é a inimizade implacável entre as duas famílias às quais os enamorados pertencem. Na bela e ao mesmo tempo melancólica novela Se a Rua Beale Falasse, de James Baldwin, que recentemente ganhou adaptação para o cinema dirigida por Barry Jenkins (Moonlight), o ódio não é apenas familiar, mas vem de toda parte, das famílias, da religião e, principalmente, da sociedade e das instituições.
Se a Rua Beale Falasse é a história de amor entre os jovens Trish, de 19 anos, e Fonny, de 22, residentes no bairro nova-iorquino do Harlem no começo dos anos 1970. Amigos desde a infância (Fonny, às turras com a própria família, incluindo aí sua mãe, fervorosamente evangélica, passa mais tempo na casa de Trish do que na própria), ambos começam uma história de amor repleta de boas intenções, mas que logo se vê desafiada.
Intenso, sem educação formal mas com um temperamento artístico, Fonny se vira como pode em subempregos enquanto se dedica à noite a fazer esculturas. Mais jovem e apaixonada, Trish adora o namorado, e ambos estão de casamento marcado quando Fonny é acusado do estupro de uma mulher porto-riquenha.
As provas contra o rapaz são circunstanciais, os testemunhos são vagos, mas por trás da história há a sombra de um policial racista que parece orquestrar a acusação e enquadrar as testemunhas. Fonny é levado à prisão esperando julgamento no exato momento em que Trish descobre que está grávida, e a maior parte do livro se dedica a narrar a luta dela e de sua família para tentar provar a inocência do jovem.
Negro, homossexual e uma voz que nunca deixou de ser combativa, Baldwin (1924–1987) foi um dos maiores escritores do século 20 – não pelo seu ativismo, mas pela forma complexa como seus livros, escritos com uma linguagem de alta densidade poética, encenam questões essenciais da integração do indivíduo a uma estrutura montada para repeli-lo. Ele também retrata as tensões raciais e sociais que ferviam por baixo da autoimagem americana. Seus dois principais romances, Terra Estranha e O Quarto de Giovanni, foram lançados no ano passado pela Companhia das Letras, que agora também publica esta novela.
Baldwin também esteve nos cinemas em 2018 com o elogiado documentário Eu Não Sou Seu Negro, baseado em seu livro inacabado sobre as mortes de líderes ativistas afro-americanos. Se a Rua Beale Falasse, narrado em boa parte pela voz de Trish, tem como mérito oferecer uma visão ao mesmo tempo pessoal e profundamente social do racismo. E é um ótimo começo para descobrir a força de sua prosa.
Se a Rua Beale Falasse
James Baldwin
Romance. Tradução de Jorio Dauster, 224 páginas, R$ 49,90 (papel) e R$ 34,90 (e-book)
OUTROS LANÇAMENTOS
O QUE TEM DE MAIS LINDO DO QUE ISSO?, de Kurt Vonnegut
Reunião de 15 textos de não ficção do escritor Kurt Vonnegut (1922–2007), mais especificamente discursos proferidos para turmas de formandos em universidades variadas entre os anos de 1978 e 2004. São textos compostos com humor espontâneo, tiradas intrigantes, aforismos desconcertantes e reflexões sobre a realidade que não perderam o viço. Pacifista, anarquista e ateu, Vonnegut oferece em seus discursos uma visão apaixonada da vida, instando seus ouvintes a aproveitar a beleza dos pequenos momentos de satisfação plena. Tradução de Petê Rissatti. Rádio Londres, 176 páginas, R$ 49,50.
O ELEITO, de Thomas Mann
Novela em que Thomas Mann reconta um poema medieval mesclando temas bíblicos com a versão católica de um Édipo Rei. Filho do incesto de dois irmãos da nobreza, Gregório, ao atingir a idade adulta, sai em busca de seus pais, obcecado pela ideia de perdoá-los, mas acaba casando com a própria mãe. Ao descobrir que repetiu o incesto de sua origem, Gregório não fura os olhos como Édipo, mas sai em peregrinação mística para redenção de seus pecados, uma jornada que o levará de pecador a santo. Tradução de Claudia Dornbusch. Companhia das Letras, 272 páginas, R$ 64,90 (papel) e R$ 39,90 (e-book).
BOY ERASED: UMA VERDADE ANULADA, de Garrard Conley
Livro de memórias no qual o produtor Garrard Conley narra a difícil descoberta de sua homossexualidade e o conflito entre sua orientação e o ambiente familiar rígido em que foi criado. Filho de um pastor evangélico, Conley, ao revelar sua homossexualidade aos pais, foi coagido a participar de um “programa terapêutico” sob a orientação da igreja para “se curar” de sua condição. A alternativa seria a expulsão de casa. O livro foi adaptado recentemente para o cinema com Lucas Hedges como protagonista e Nicole Kidman e Russell Crowe como os pais do jovem. Tradução de Carolina Selvatici. Intrínseca, 320 páginas, R$ 49,90 (papel) e R$ 34,90 (e-book).
UM QUARTO SÓ SEU, de Virginia Woolf
Edição pela L&PM Pocket do ensaio de Virginia Woolf (1882–1941) escrito em 1929 e considerado um dos marcos intelectuais do feminismo. Ao perguntar-se por que tão poucas mulheres faziam carreira na literatura, ela descarta a explicação corrente de seu tempo – que considerava as mulheres pouco afeitas à criação intelectual – e afirma que a condição social das mulheres e as limitações impostas pela sociedade, em que a privacidade e o recolhimento são privilégios de homens, são as verdadeiras responsáveis por essa ausência. Tradução de Denise Bottmann. L&PM Pocket, 160 páginas, R$ 21,90.