Três dos cinco concorrentes ao Oscar de melhor documentário em longa-metragem discutem a questão do racismo e dos direitos civis dos afro-americanos: o monumental O. J.: Made in America, com oito horas de duração, A 13ª Emenda e Eu Não Sou Seu Negro. Em cartaz atualmente na Capital, Eu Não Sou Seu Negro parte de escritos e falas do romancista, ensaísta, dramaturgo e poeta norte-americano James Baldwin (1924 – 1987) para construir uma vigorosa e inteligente reflexão sobre a identidade negra, os padrões culturais e a clivagem racial nos Estados Unidos.
O diretor e roteirista haitiano Raoul Peck tomou como ponto de partida cerca de 30 páginas de um manuscrito que Baldwin começou em 1979 e nunca concluiu, no qual pretendia costurar sobre um amplo pano de fundo histórico as vidas e os assassinatos, entre 1963 e 1968, de três ativistas que marcaram a história social e política norte-americana: Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King Jr. O longa exibe um farto material com imagens de época, que recuperam os protestos e movimentos pelos direitos civis na década de 1960. Outra fonte visual são as cenas de filmes hollywoodianos que ilustram os comentários de Baldwin sobre a importância do cinema na cristalização de visões de mundo e estereótipos. Por fim, o próprio intelectual aparece em registros como debates e programas de TV, expondo seus pontos de vista com verve e clareza admiráveis.
Um dos aspectos mais impressionantes de Eu Não Sou Seu Negro é a triste atualidade de problemas debatidos há décadas, como a segregação institucionalizada ou velada, a marginalização social das comunidades afro-americanas e o sentimento paternalista com relação às demandas civis – Baldwin denuncia, por exemplo, o discurso de políticos que pedem paciência aos negros que exigem direitos naturalmente concedidos aos brancos. Peck identifica um desequilíbrio da visibilidade negra também no cinema atual:
– Quatro dos cinco documentários indicados ao Oscar foram dirigidos por negros. A discussão do #OscarSoWhite (crítica à ausência de atores e diretores negros na premiação de 2016) é muito superficial, porque todos esses realizadores tiveram que batalhar muito para fazer seus filmes e não sabiam se eles ficariam prontos neste ano, no ano passado ou no ano que vem. O problema não é a Academia (instituição responsável pelo Oscar), eles fazem o trabalho deles, abrindo as portas para novos talentos e associados, como os realizadores latino-americanos, por exemplo. A grande questão é quem decide produzir os filmes. Se ainda tivermos uma maioria de jovens homens brancos com o poder de escolher quais filmes serão produzidos, nada vai mudar estruturalmente. Esse é o grande elefante na sala que ninguém quer confrontar.
Ex-ministro da Cultura do Haiti, Raoul Peck conversou com ZH às vésperas da exibição no Festival de Berlim de seu mais recente filme, o drama biográfico Le Jeune Karl Marx, sobre a amizade e a parceria do filósofo e sociólogo alemão com seu colega intelectual Friedrich Engels:
– Esse filme também me tomou 10 anos para ser feito, porque foi difícil escrevê-lo. Queria fazer um filme que fosse histórica, filosófica e politicamente real e forte. É o primeiro filme feito no mundo ocidental sobre Karl Marx. Claro que serei criticado tanto pela esquerda quanto pela direita, mas é esse mesmo o objetivo, confrontar as pessoas com a realidade e não com a caricatura que fizeram de Marx. Engels e Marx foram as primeiras pessoas a serem assassinadas pela revolução, porque eles nunca acreditaram que ela poderia ser feita na Rússia, que consideravam um país de Terceiro Mundo. A partir daí, tudo deu errado, e eles não podem ser culpados por isso.
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Eu Não Sou Seu Negro
De Raoul Peck
Documentário, EUA/França/Bélgica/Suíça, 2016, 93min, 12 anos.
Cotação: 5/5
Entrevista
Raoul Peck - Diretor e roteirista haitiano
O que o motivou a fazer esse filme?
Eu li James Baldwin quando era muito jovem. The Fire Next Time foi um dos livros que mudou minha vida. Como um jovem negro que não conseguia ver seu rosto no cinema nem encontrava autores que contassem minha narrativa, tirando alguns autores latino-americanos, Baldwin foi uma das poucas pessoas que realmente importavam. Ele é um incrível filósofo e um cientista político à sua maneira, um grande poeta. Há mais ou menos 10 anos, quando vi o que estava acontecendo no mundo, o crescimento do racismo e da ignorância, o baixo nível da discussão intelectual, eu sabia da importância da voz de Baldwin e o que ela tinha feito por mim. Decidi fazer um filme para trazê-lo de volta aos públicos jovens, como a garotada dos movimentos Occupy Wall Street e #BlackLivesMatter, que precisavam escutar essas palavras, esperando que Baldwin também abrisse as mentes deles.
Como você chegou a esse texto inacabado de Baldwin?
Procurei os responsáveis pelo espólio de Baldwin, que normalmente dificultam a liberação dos direitos para as pessoas. Por alguma razão, eles me convidaram e eu conheci Gloria Karefa-Smart, irmã mais nova de Baldwin e quem cuida do seu legado, e eles basicamente me deram o que eu precisava, que era ter acesso a tudo dele, algo sem precedentes na indústria cinematográfica. Você em geral consegue negociar a opção de filmar um livro ou um capítulo, mas nunca todos os livros, incluindo manuscritos, cartas etc. Com isso tudo em minhas mãos, eu sabia que tinha que fazer um filme muito singular e forte.
Qual foi o seu ponto de partida para estruturar o filme?
O que eu fiz foi tirar das notas de Baldwin o que achei importante, especificamente a história daqueles três homens, a amizade e a contradição entre eles. Essa é a espinha dorsal do filme. Mas, claro, como artista, foi uma desculpa para eu revisitar toda a obra de Baldwin. Usei também muito de seus livros, cartas e material não publicado. Esse livro imaginário que surgiu na montagem do filme inclui em parte a minha imaginação, minha própria mitologia, minha crítica ao cinema americano. Eu cresci vendo os mesmos filmes americanos que Baldwin, os filmes de John Wayne. Isso moldou igualmente as minhas imagens. Descobri desde cedo que os filmes nunca são inocentes, eles transmitem ideologias, modos de vida, o que os americanos chamam de "poder suave". Quantos brasileiros se veem na tela do cinema, sejam eles brancos, negros ou índios? São sempre narrativas americanas as dominantes. É o que Baldwin faz e me ensinou: questionar as narrativas. Mesmo quando um filme parece ser um enorme progresso, ele traz uma linguagem dúbia. Por exemplo, Adivinhe quem Vem para Jantar, com Sidney Poitier. Eu era muito jovem quando vi esse filme e fiquei muito orgulhoso de ver esse negro bonito e educado que era médico e conquistou a garota branca. Mas também havia uma ambiguidade nessa imagem, porque usá-lo como modelo era uma forma de calar a boca de todo mundo. Aquele era um negro que poderia ser aceito. Baldwin me deu o instrumento para analisar e desconstruir isso.
Como foi a escolha de Samuel L. Jackson para a narração do filme?
Experimentei muito com vozes em meus filmes anteriores. Um dos meus primeiros filmes foi o documentário Lumumba (sobre Patrice Lumumba, líder da independência do Congo), no qual eu tentei todos os tipos de atores para narrar. Nenhum deles me satisfez e decidi eu mesmo fazer a voz. Aprendi que você tem que criar um personagem narrando. Quando dizem que Samuel L. Jackson fez a narração, eu digo que não, porque o narrador se distancia do texto. E eu não queria distância, eu queria que ele fosse o texto, que viesse do corpo dele. Quando isso acontece é ótimo, porque daí você tem a dor, a raiva, a poesia, a ironia, o humor. O filme fala com o público como se fosse o próprio Baldwin.