
Por Cara Buckley
The New York Times, Los Angeles
A caminho do encontro que teria com Charlize Theron, algumas semanas atrás, não sabia se me sentia animada ou apavorada. Para começar, ela é uma atriz famosíssima e toda-poderosa, dona de um glamour que lembra o das antigas divas de Hollywood; além disso, interpretou uma série de personagens duronas com tanta propriedade que não é difícil concluir que parte de si bebe na fonte da fúria canalizada. Obviamente, tendo ganhado um Oscar, faz um trabalho impecável, mas os retratos primorosos que fez de assassinas fictícias e reais – como Aileen Wuornos em Monster – Desejo Assassino, a Imperatriz Furiosa em Mad Max: Estrada da Fúria, Ravenna em Branca de Neve e o Caçador e agora a implacável combatente de Atômica, que estreia no dia 31 – sugerem uma mulher que não tolera gente estúpida.
Porém, também é suscetível a resfriados e teve que cancelar nosso almoço horas antes do combinado, remarcando-o para o dia seguinte. Mais tarde, explicou que estava brigando com o vírus e pouco antes do horário em que nosso bate-papo deveria acontecer, tomara um xarope que a deixara meio zonza e pouco disposta. “Mil desculpas”, disse, ao se acomodar na mesa de canto de um restaurante dentro do estúdio Universal. Ela é luminosa, magra e, pelo que pude constatar, não tem poros. E como as longas sequências de luta de Atômica mostram, sua ética de trabalho é matadora. No bom sentido.
– Fiz dois filmes como dublê do Jean-Claude Van Damme e posso dizer que ela treinou tanto quanto ele. Sem querer diminuir o Jean-Claude, que é fantástico, mas ela não sabia nada de artes marciais e partiu do zero. Fez questão de ser impecável desde o início – conta David Leitch, ex-coordenador de dublês e diretor de Atômica.

Além de solidificar a posição de Charlize como heroína de filmes de ação, Atômica dá a impressão de ser o próximo passo lógico de uma atriz que impressionou o mundo, em 2015, como a guerreira de um braço só Furiosa, roubando a cena do astro de Mad Max, Tom Hardy. Depois de brilhar ao longo de toda uma carreira camaleônica, seja como par romântico, protagonista de drama, anti-heroína de comédia de humor negro ou assassina em série, a loira hoje, aos 41 anos, é dona de um poder feminino e uma ferocidade pelos quais o público anseia mais do que nunca. Como Furiosa, e também Cipher no mais recente Velozes e Furiosos, sua personagem em Atômica é explícita e esperta, ocupando seus domínios completamente em vez de meramente existir neles ou decorá-los de acordo com um mundo definido pelos homens.
No filme, Lorraine Broughton, agente do MI 6, descobre uma rede de espionagem na Berlim de 1989 enquanto tenta elucidar o assassinato de um colega – e o longa não tem nada do saudosismo da década de 1980. É sensual e descolado, e a protagonista consegue unir o visual de Debbie Harry com a tenacidade de Chrissie Hynde.
Charlize começou a “vender” a história antes que o romance gráfico em que se baseia, The Coldest City, fosse lançado, em 2012. Adorou o fato de Lorraine ser impenitente e lutar apenas pelo dever profissional, e não para vingar a perda de um marido ou filho. (Há quem insinue que ela teria uma ligação mais íntima com o espião morto.) Parte do que é tão irresistível e até transgressor em relação ao filme é a forma explícita como os ferimentos de Lorraine são expostos. Seu rosto fica roxo e inchado porque cumpriu sua missão, e não por ter sido vítima.

– Sempre foi muito claro para mim que, em determinadas circunstâncias, a mulher não pode agir da mesma forma que o homem e eu vivia procurando uma personagem que rompesse com essas regras.
Sugiro que Lorraine se encaixa no molde das personagens a que Charlize tende a dar preferência.
– Tem um lance de vingança, mas também algo... – hesito.
– Desarranjado? Psicopata? – sugeriu, direta.
Difícil dizer se ela estava falando sério ou sendo sardônica, mas, na verdade, era um pouco dos dois. Seu senso de humor fica entre o sarcástico e o ácido. Cinco anos atrás, quando adotou o primeiro filho, Jackson, um repórter lhe perguntou como ela estava se adaptando à maternidade, ao que respondeu: “Já dei uns preguinhos para ele brincar e, de vez em quando, deixou um pires com leite”.
– O humor é a única coisa que me ajuda a levar a rotina; e é o que ajuda a gente nos períodos mais sombrios.
E por falar nisso, a atriz conheceu a tragédia logo cedo. Quando tinha 15 anos e ainda morava na África do Sul, onde nasceu, seu pai, sempre ausente e alcoólatra dado à violência verbal, chegou em casa um dia, depois de uma bebedeira homérica com o irmão dele, para ameaçar a mulher e a filha com uma arma. Começou a atirar, mas a mãe de Charlize conseguiu tirar a arma de sua mão e revidou, matando o próprio marido e ferindo o irmão dele em um episódio classificado pela polícia como “legítima defesa”.
– Por pior que aquela noite tenha sido, os anos que a antecederam foram pura agonia; minha vida parecia um pêndulo alucinado, alternando entre a turbulência e a calmaria – lembra.
Depois do episódio, sua mãe, Gerda Jacoba Aletta Maritz, disse que aquele foi um momento crucial: era se afundar ou superar. A voz da atriz falha, e os olhos se enchem d’água.
– Sobrevivemos e tenho muito orgulho disso. Dei duro, mas consegui. E não tenho medo; não temo a escuridão. No máximo, ela me intriga porque acho que explica a natureza humana e as pessoas em geral. Gente como Aileen Wuornos, por exemplo, que o povo prefere rotular e, tipo, jogar embaixo do tapete. Ninguém quer analisar um ser humano desses, ninguém quer olhar para ela e sequer imaginar o que pode ter acontecido para ser como é. Os motivos me fascinam. Afinal, sob vários aspectos, é por causa deles que estou aqui hoje.

A estrela refuta a ligação entre sua história e a experiência de personagens como Furiosa (“inacreditavelmente ferida”) e Ravenna (“um caos”, aproveitando para inserir um palavrão; seu vocabulário é mais sujo que uma latrina), mas as dificuldades que ambas enfrentam e a força que demonstram como resultado disso têm para ela um quê pessoal.
– Só um idiota não percebe que gosto de mulheres que sabem lutar, que são vencedoras e superam situações críticas. Não são vítimas, mas também não são super-heroínas.
Charlize não tem sotaque algum, embora o inglês seja sua segunda língua, depois do africâner. Saiu da África do Sul aos 16 anos, cursou a Escola de Balé Joffrey e trabalhou como modelo. Começou a conquistar papéis em Hollywood em meados dos anos 1990, graças ao visual chamativo e à autenticidade crua captada pela câmera. O papel que definiu sua carreira foi no primeiro longa de Patty Jenkins, Monsters – Desejo Assasino (2003), que por pouco não foi lançado direto em vídeo.
– Durante as filmagens, cheguei a receber telefonemas de um dos produtores, furioso pelo fato de minha personagem ser tão detestável.
E completa dizendo que a cineasta a aconselhou a ficar na sua e segurar a onda.
– Ela disse: “Quando resolverem cortar a verba, já vamos estar finalizando o filme.” E continuamos. Mas os caras reclamaram o tempo todo – completa Charlize, que levou um Oscar pela interpretação.
Desde então, sua vida mudou radicalmente. Além de Jackson, hoje com cinco anos, ela adotou também August, de dois, e cria ambos “com um bando de mulheres”, segundo as próprias palavras, que inclui Gerda, que mora na mesma rua. Sua produtora, a Denver & Delilah, emplacou duas séries na Netflix, e Charlize encara o cancelamento da terceira, Girlboss, com serenidade.
– É a vida. O que se há de fazer?