Lançados entre 2018 e 2020, Distúrbio (Unsane), The Perfection e O Homem Invisível (The Invisible Man) transformam em filme de terror uma realidade vivida por muitas mulheres. Suas personagens precisam enfrentar homens abusivos e relacionamentos tóxicos. Devem lidar com o processo de anulação feminina (que pode culminar no feminicídio) e o gaslighting, uma forma de manipulação psicológica tão sofisticada, que é difícil de denunciar. São ameaçadas, agredidas e perseguidas por caras que prometem amor eterno, mas que, no fundo, só querem uma prisioneira íntima. Acabam levadas à loucura. Conseguirão se safar?
Curiosa e coincidentemente, os três filmes – todos tensos e, não raro, torturantes – foram dirigidos por homens. Steven Soderbergh assina Distúrbio (2018), que está em cartaz no Amazon Prime Video (procure por Unsane). Richard Shepard é o realizador de The Perfection (2019), que integra o catálogo da Netflix. E Leigh Whannell fez O Homem Invisível (2020), agora disponível em plataformas como Now, Google Play e Apple TV.
Acima da média, os três longas-metragens também têm em comum o ótimo desempenho de suas protagonistas. A inglesa Claire Foy, que interpretou a jovem rainha Elizabeth II nas primeiras duas temporadas do seriado The Crown, estrela Distúrbio. Egressa da série Girls, a americana Allison Williams – a namorada de Daniel Kaluuya em Corra! – está à frente de The Perfection. Em O Homem Invisível, a também americana Elisabeth Moss dá sequência a seus papéis de personagens que buscam combater a opressão às mulheres – desde a Peggy Olson do seriado Mad Men, sobre o mundo da publicidade na Nova York dos anos 1960, até a Offred da versão para TV do romance distópico O Conto da Aia, The Handmaid's Tale, passando pela detetive Robin do seriado Top of the Lake.
Em Distúrbio, Claire encarna Sawyer Valentini, executiva de uma instituição financeira. Traumatizada por um ex-namorado, que a estaria perseguindo, certo dia ela procura ajuda psiquiátrica em uma clínica, onde acaba internada. Em meio à reflexão sobre como desacreditamos relatos de assédio, o filme também faz um assustador comentário sobre o sistema de saúde dos Estados Unidos.
The Perfection conta a história de Charlotte, uma jovem que era um prodígio do violoncelo, instrumento que teve de abandonar quando sua mãe adoeceu. Anos depois, após a morte da mãe, ela resolve procurar seu antigo mentor, Anton (Steven Weber), que agora tem uma nova pupila, Elizabeth (Logan Browning, principal atriz da série Cara Gente Branca). A partir daí, o filme toma rumos inesperados – e por vezes bizarros e violentos.
Logo no começo da nova versão do clássico O Homem Invisível, acompanhamos Cecilia, na calada da noite, fugir do marido, o gênio da óptica Adrian Griffin (referência ao personagem do romance original, de H.G. Wells), controlador e agressivo. Como o nome do filme entrega, ele vai assombrá-la. Cecilia grita, mas ninguém acredita nela. Sua sanidade é posta em xeque.
— É isso o que ele faz: ele me faz sentir que eu sou a louca da relação! — diz a protagonista, espelhando o drama de muitas mulheres da vida real.
Cada filme tem seu charme narrativo. Soderbergh filmou Distúrbio usando a câmera de um iPhone 7, o que se reverte em planos claustrofóbicos, ângulos inusitados e uma atmosfera cada vez mais aterradora. Em The Perfection, Richard Shepard aperta a tecla rewind para nos mostrar que as coisas não aconteceram do jeito que tínhamos entendido – com o perdão do lugar-comum, em alguns momentos isso é de cair o queixo.
Como um dedicado aprendiz de Alfred Hitchcock, Leigh Whannell presta em O Homem Invisível uma série de tributos ao mestre do suspense, a começar pelas nervosas cordas da trilha sonora. Mas há também a movimentação cadenciada, porém desnorteante, da câmera, a montagem que dá tempo e espaço para que o espectador perceba o perigo em cena, a protagonista que tem a vida desestruturada a ponto de precisar provar que não é culpada, o vilão que tem a cumplicidade do público e o apelo ao nosso voyeurismo – marca identitária do cinema em si. Existe até um MacGuffin, o importante objeto insignificante, no caso, a tecnologia por trás da invisibilidade.
Embora recorram a truques, efeitos especiais e outros recursos do cinema de horror, os três títulos, de certa forma, configuram-se como um contraponto mais realista a 365 dni, que encena como se fosse conto de fadas uma história de sequestro, cárcere privado e abuso sexual (a do mafioso Massimo com a polonesa Laura). Descontada a porção ficção científica, suas tramas parecem mais próximas do que acontece do lado de fora da tela, onde minha colega Kelly Matos desabafou recentemente:
"Já perdi as contas de quantas vezes escrevi sobre violência contra a mulher aqui na coluna. Agressões, socos, tiros, facadas. Parem de nos matar".