Publicada a partir de 2011, a trilogia 50 Tons de Cinza não é a mãe do romance sadomasoquista, mas seu sucesso – foram mais de 100 milhões de livros vendidos e mais de US$ 1,3 bilhão arrecadados pelas adaptações cinematográficas – certamente gerou filhos. Um desses rebentos é 365 dni, da escritora polonesa Blanka Lipinska, que também tem três partes e que também virou filme. A estreia foi nesta segunda-feira (8), na Netflix.
Na comparação com 50 Tons de Cinza, há diferenças importantes. Em vez de um empresário milionário como Christian Grey, temos um mafioso talvez até mais rico, o italiano Massimo (Michele Morrone). Em vez de uma jovem universitária virgem como Ana Steele, temos uma mulher quase na casa dos 30 anos e bastante interessada em sexo, a executiva polonesa Laura Biel (Anna Maria Sieklucka). Em vez de uma transa baseada em dominação e punição da parceira, temos, simplesmente, sequestro, cárcere privado, ameaça de estupro e quase todo tipo de situação que caracteriza um relacionamento tóxico.
Sim, o timing é "perfeito": enquanto o Brasil vê aumentarem os casos de feminicídio durante a pandemia de coronavírus (levantamento exibido pelo Fantástico no final de maio mostrou um crescimento de 22,4% em março e abril, em relação ao mesmo período do ano passado), enquanto a busca por ajuda em situações de violência doméstica, via número 180, apresentou uma alta de 37% em abril (veja relatos aqui), surge um filme que romantiza o abuso sexual e que objetifica a mulher.
365 dni só não é barra-pesada – ou quem sabe seja justamente por isso – porque embeleza o venenoso pacote. O diretor de fotografia, as figurinistas e a diretora de arte capricharam na escolha dos cenários, como uma fortaleza na Sicília, nos ternos e vestidos e na iluminação e composição das cenas. Com classificação indicativa de 18 anos, 365 dni também só não é pornográfico graças ao trabalho do diretor de fotografia, das figurinistas e, agora, do montador, que souberam esconder ou evitar o aparecimento de genitais nas várias sequências de sexo ou erotismo e trocas de posição.
A história contada pelos diretores Barbara Bialowa e Tomasz Mandes começa na tal fortaleza siciliana e dá a entender que o filme terá algo próximo de uma trama policial com matizes de denúncia. Dois sujeitos de preto tentam convencer um senhor de branco a entrar em um negócio de tráfico de mulheres – "Algumas nem chegaram a 12 anos", diz um deles. Mas o diálogo existe apenas para emprestar um "código de ética" ao protagonista masculino, como se houvesse mafioso bonzinho. É aí que conhecemos Massimo, flagrado pelo pai, o homem de branco, espiando de binóculo uma mulher na praia.
— Mulheres bonitas são o paraíso dos olhos e o inferno da alma — sentencia o patriarca.
— E o purgatório do bolso — acrescenta o filho.
Mal dá tempo de depurar o machismo da conversa: logo em seguida, o pai é assassinado, e o rapaz, alvejado. A câmera lenta e a música lacrimejante nos suplicam: é para sentirmos pena do sujeito, entendermos sua dor e, portanto, sua motivação quando começar a agir como um abusador.
Cinco anos depois, estamos em San Francisco, nos Estados Unidos. A transição é acompanhada por uma das inúmeras canções brega do filme, todas transitando entre o rock e a eletrônica, muitas delas com vocais sensuais. Essa primeira traduz a mensagem, digamos, de 365 dni: "You told me that im free to go / but I'm addict to you" (Você me disse que eu sou livre para ir / mas sou viciada em você).
Lá em San Francisco, em uma montagem paralela, vemos Massimo e a senhorita Biel em reuniões de trabalho – das quais pouco se entende e nada se tira para o desenvolvimento da trama. Servem, é verdade, para mostrar como Massimo e Laura são elegantes no visual e competentes no que fazem, mas, quando ficam sozinhos cada um em sua mesa, transparece uma tristeza, um vazio.
O jogo de montagem paralela prossegue: excitada pelo poder, Laura chega em casa e, como de hábito, o marido não lhe dá atenção – então, ela recorre a um vibrador para sublimar a decepção. Em seu jatinho particular, Massimo recebe uma notícia ruim (roubaram seu contêiner de cocaína, coitadinho!) – então, ele desconta sua frustração forçando a comissária de bordo a fazer sexo oral nele. Puxa-a pelos cabelos, meio que a sufocando, e nem retribui o prazer, mas a cena termina com a moça dando um sorrisinho para si mesma.
Massimo e Laura, já dá para intuir, são dois pombinhos que vão voar um para o braço do outro. Exceto que o voo dela até a Sicília será coagido. Mais do que isso: ela acaba raptada por capangas do bonitão tatuado, que, em uma solução deveras artificial do roteiro, afirma persegui-la desde que vira seu rosto em uma aparição, quando ficou à beira da morte após o assassinato de seu pai.
Mas não se aflija: esse é o único momento mais místico, por assim dizer, de 365 dni. Dali em diante, é pão pão queijo queijo. Massimo vai esbanjar sua prepotência, justificando o título do filme: Laura terá 365 dias (dni, em polonês) para se apaixonar por ele. O garanhão diz:
— Não vou fazer nada sem sua permissão (exceto, claro, manter você presa aqui e te agarrar se tentar fugir). Vou esperar você me querer e vir me procurar (mas nesse meio tempo vou te acorrentar em uma cama e te ameaçar de estupro). Você tem um ano. Se até lá não me amar, eu te deixo ir (porque, lembre-se, no fundo eu sou o mocinho do filme).
Laura, por sua vez, cumpre o papel fetichizado da mulher que seduz e se deixa seduzir pelo cara mau, da mulher que vende o corpo por uma coleção de roupas e sapatos e por passeios em iates. Depois de Massimo tanto tratá-la como propriedade, depois de dizer a ela – e, por extensão, a todas as mulheres – que não adianta lutar, que ela não pode ser tão desobediente, a vítima enfim cede ao agressor.