Calibre, que eu só fui conhecer dias atrás, na Netflix, é o tipo de filme que agrada por jogar o espectador em uma posição desconfortável. Essas obras nos tornam cúmplices do protagonista, emparedado por um dilema moral. A escolha nunca é simples, ainda que daqui, do conforto do sofá, de vez em quando pareça. A omissão pode ser tão danosa quanto a ação.
O que você faria se tivesse de assassinar uma pessoa para salvar seu filho?
O que você faria se testemunhasse um crime, mas o bandido soubesse onde sua família mora?
O que você faria se matasse acidentalmente alguém?
O que você faria se encontrasse um bebê maltratado pelos pais?
O que você faria para proteger sua ascensão econômica e social?
Perguntas assim são feitas simultaneamente aos personagens e a nós nestes cinco filmes, da Europa, da Coreia do Sul e dos Estados Unidos.
Match Point (2005)
O próprio Woody Allen considera este suspense existencial (que pode ser visto na Netflix) um de seus melhores filmes. Certamente é o mais sensual e o mais trágico – não à toa, a tradicional trilha de jazz de suas comédias românticas foi substituída por árias de ópera, gênero que sempre associou desejo sexual à fatalidade. E, em vez de Nova York, estamos em Londres. A trama chega a ser simples: rapaz fica dividido entre suas ambições (o casamento com uma mulher rica) e seus desejos (a amante desprovida de tudo, menos de luxúria). Mas o filme tem uma força que impacta, e suas imagens perduram.
O protagonista é o ex-tenista Chris Wilton (Jonathan Rhys-Meyers), irlandês de origem humilde que, desde as primeiras cenas, demonstra um distorcido senso de moral: "Prefiro ter sorte a ser bom". Ao ser contratado para dar aulas em um clube, ele vê em Tom Hewett (Matthew Goode) sua porta de entrada para a alta sociedade londrina.
Como em Teorema (1968), de Pasolini, Chris seduz a família Hewett – há uma sugestão homoerótica na aproximação a Tom, e logo ele passa a namorar a irmã dele, Chloe (Emily Mortimer). O paraíso, porém, guarda uma serpente: Nola (Scarlett Johansson), uma americana aspirante a atriz e noiva do amigo rico.
Na solução do conflito, Allen mistura duas de suas influências, a tragédia grega e o romance russo do século 19. Retoma temas como limites morais, culpa, falta de coragem para a renúncia e existência ou não de uma justiça maior. Deixa-nos praticamente a sós com a consciência do protagonista enquanto ele olha ao longe, como se examinasse as escolhas que fez.
Segunda Chance (2014)
Ao intervir em um caso de briga doméstica, o policial Andreas (Nikolaj Coster-Waldau, o Jaime Lannister de Game of Thrones) e seu parceiro encontram um casal de viciados e um bebê em condições deploráveis. Andreas ultrapassa os limites da lei e da ética ao levar para casa o pequeno Sofus, que ficará aos cuidados de sua esposa (Maria Bonnevie).
Assinado pela diretora e roteirista dinamarquesa Susanne Bier, vencedora do Oscar de filme estrangeiro por Em um Mundo Melhor (2010), Segunda Chance exibe marcas do cinema de seu país. A Dinamarca é um dos países onde há o menor índice de desigualdade social e a maior qualidade de vida, é um dos países mais pacifistas do mundo e um dos menos corruptos. Mas, a julgar pelos filmes que vêm de lá, a saúde e o bem-estar da nação são inversamente proporcionais à saúde mental e ao bem-estar de seus cidadãos.
Em cartaz no Globoplay, a história de Andreas envolve mistérios de família e hipocrisias com as quais tentamos tapar nossas feridas emocionais. Susanne Bier descreveu seu filme assim: "É um drama pessoal e intenso sobre o que acontece quando pessoas vulneráveis precisam enfrentar circunstâncias que estão além do controle, sobre como não estamos tão imunes ao caos como gostaríamos e sobre os segredos guardados por aqueles que estão bem próximos".
The Witness (2018)
Eu já havia destacado este filme em uma coluna sobre o cinema da Coreia do Sul disponível na Netflix, mas reforço a recomendação. Em The Witness, o diretor Cho Ku-jang narra a história de Sang-hoon (Lee Sung-min), um homem que recém se mudou para um prestigiado condomínio na companhia da esposa e da filha pequena. A altas horas de uma noite, ele ouve o grito de uma mulher e vai até a janela do apartamento, de onde testemunha uma violenta agressão. Sang-hoon pensa em chamar a polícia, mas fica intimidado quando percebe que o agressor fez contato visual.
A partir daí, o personagem principal passa a ser caçado pelo bandido – que não deixa de ser uma representação de sua própria culpa. O filme nos pergunta: em uma sociedade individualista e regida pelas aparências, o que faríamos se alguém gritasse socorro? A cena final, que poderia acontecer em qualquer complexo de edifícios brasileiro, é muito marcante.
Calibre (2018)
Escrito e dirigido por Matt Palmer, o filme em cartaz na Netflix acompanha dois amigos de longa data que partem para uma viagem de caça no interior da Escócia. Vaughn (Jack Lowden), o afável protagonista, está para ser pai e aparenta só estar fazendo esse programa em nome da amizade. Marcus (Martin McCann) é festeiro e impulsivo – na primeira noite, já arranja confusão ao paquerar uma garota local no bar frequentado pela comunidade.
Parece que veremos uma daquelas histórias em que a presença de um ou mais forasteiros gera uma turbulência na dinâmica de uma cidadezinha, mas o diretor e roteirista tem mais a nos oferecer. A soma da inexperiência com armas de Vaughn com a impetuosidade de Marcus vai colocá-los em uma terrível enrascada. É como se, na floresta onde foram caçar veados, entrassem em uma areia movediça moral, dessas das quais carregamos marcas para o resto da vida.
Cascavel (2019)
Para salvar uma vida, você tiraria outra vida? Existe uma régua para medir se alguém merece morrer? Você teria a coragem – ou seria a covardia? Tomada essa decisão, como continuar vivendo com esse peso?
Esses são alguns dos dilemas que o roteirista e diretor australiano Zak Hilditch (que adaptou Stephen King em 1922) propõe no suspense Cascavel. A atriz Carmen Ejogo (da terceira temporada de True Detective) interpreta Katrina, uma mãe solteira que está viajando de carro com a filha pequena, Clara, do Arizona para Oklahoma, nos Estados Unidos. São mais de 14 horas de jornada. Por isso, enquanto atravessa o Texas, Katrina, diante de um engarrafamento, resolve pegar um desvio. Como é típico ao gênero, há um preço a pagar: o pneu fura no meio do deserto. Pior: Clara sai para brincar e acaba mordida por uma cascavel.
A cobra convida a uma aproximação com 1922, em que os ratos simbolizam a degradação moral do protagonista. Em Cascavel, a personagem principal é alertada por um chocalho ético de que está prestes a envenenar sua consciência. Clara é salva por uma mulher misteriosa, mas caberá a Katrina um preço que pode ser alto demais.