Faz um ano que o mundo se tornou hospedeiro de Parasita. Em 25 de maio de 2019, o filme da Coreia do Sul conquistou a Palma de Ouro, o mais importante prêmio do Festival de Cannes, na França. Era o início de uma trajetória superlativa, com quase 260 troféus. Entre eles, os Oscar de direção (Bong Joon-ho), roteiro original e melhor filme – pela primeira vez em 92 cerimônias, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood entregou sua principal estatueta dourada a uma obra não falada em inglês.
Os holofotes sobre Parasita iluminaram, consequentemente, a produção sul-coreana como um todo. O público passou a procurar outros títulos dirigidos por Joon-ho, como O Hospedeiro e Okja, a relembrar cineastas como Park Chan-wook (de Oldboy e A Criada) e Kim Ki-duk (Casa Vazia e Pietá) e a descobrir realizadores mais jovens, caso de Yeon Sang-ho, 42 anos, de Invasão Zumbi (2016).
Sob o Efeito Parasita, consumi um bocado de filmes da Coreia do Sul. Resolvi destacar aqui cinco que, de alguma forma, dialogam com o grande ganhador do Oscar. Pode ser porque trazem protagonistas moralmente ambíguos, mas que nos cativam porque, além de estarem rodeados por gente pior, não querem mais do que nós queremos: uma vida melhor, quem sabe em um lugar quente e com água cristalina, ou algum tipo de justiça. Pode ser porque misturam gêneros como faz Bong Joon-ho: o suspense policial é um ingrediente básico, mas também há pitadas de humor e fartas doses de comentário ou crítica social – sobretudo em The Witness (2018) –, e alguns incluem traços de terror e até mesmo ficção científica. Pode ser porque a trama está recheada de plot twists, as viradas que nos desconcertam, a exemplo do que acontece naquela noite chuvosa em Parasita – a engenhosidade é um dos trunfos de Rastros de um Sequestro (2017).
O ponto de conexão também pode ser visual. Dois atores de Parasita têm papéis de destaque: Lee Sun-kyun (o pai rico) protagoniza Um Dia Difícil (2014), e Choi Woo-shik (o filho pobre) é um dos coadjuvantes de Tempo de Caça (2020). Mas, como a mostrar a multiplicidade de talentos no cinema sul-coreano, os elencos não se repetem entre os cinco filmes e há cinco diretores diferentes – dois deles com menos de 40 anos (Kim Joon-sung, de Sonhos Lúcidos, é o caçula, com 36 anos).
Confira as histórias dos cinco filmes, todos disponíveis na Netflix:
Um Dia Difícil (2014)
Dirigido por Kim Seong-hun, 49 anos, que depois faria O Túnel (2016), talvez seja o único filme da lista com alívio cômico. Em parte por causa do desempenho de Lee Sun-kyun (o pai rico de Parasita) como o protagonista, um policial cínico e corrupto. Em parte pelas encrencas nas quais ele vai se meter desde que, ao voltar do velório da mãe, atropela um mendigo e resolve enterrá-lo no mesmo caixão materno. Em parte pelo vilão assumidamente caricato – mas absolutamente intimidador – encarnado por Cho Jin-woong. Em parte pelas cenas de ação, boladas com um senso de humor macabro digno dos desenhos animados do Pica-Pau, de Tom & Jerry e do Papa-Léguas.
Rastros de um Sequestro (2017)
Quanto menos você souber do filme de Jang Hang-jun, 50 anos, melhor. O que dá para dizer sem ser estraga-prazeres é que começa com a mudança de uma família – pai, mãe e dois filhos de 20 e poucos anos – para uma casa nova. Jin-seok (Kang Ha-neul), o caçula, é quem nos guia – e juntos tomaremos um susto que tão cedo não esqueceremos. Em uma noite chuvosa, ele vê seu irmão, Yoo-seok (Kim Mu-yeol), ser sequestrado. Dias depois, ele reaparece. Mas há algo de estranho no seu comportamento. Se parece que já contei muito, não se preocupe. Muita água ainda vai rolar neste filme que remete a Parasita em uma série de aspectos, como a fotografia e a ambientação, o tom trágico na transição dos gêneros e o peso avassalador das escolhas erradas.
Sonhos Lúcidos (2017)
Única ficção científica do conjunto, é também o filme mais irregular, a ponto de praticamente pôr tudo a perder em seu terço final. Mas a estreia do diretor Kim Joon-sung, 36 anos, tem seus momentos. Dae-ho (Soo Go) é um repórter que investiga políticos e empresários corruptos. Durante um passeio com seu filho pequeno em um parque de diversões, o menino é sequestrado. O jornalista, então, passa a dedicar a vida a encontrá-lo. Um dos lugares em que procura é na sua própria memória: em um estratagema semelhante ao de A Origem (2010), de Christopher Nolan, Dae-ho pode ter sonhos lúcidos, ou seja, é capaz de reviver suas lembranças daquele fatídico dia, agora prestando atenção a detalhes como uma mão tatuada. Como thriller, o filme vai bem, mas seu universo onírico ora parece uma cópia de obras anteriores, ora abusa do desrespeito a uma lógica interna. O núcleo humorístico não funciona, e a ação carece de criatividade. Ainda assim, pode agradar àqueles que, como eu, aprenderam com o cineasta americano Brian de Palma o fascínio do retorno à cena do crime – vide Um Tiro na Noite (1981), Olhos de Serpente (1998), Femme Fatale (2002), Dália Negra (2006)...
The Witness (2018)
Aquele que tem o roteiro mais simples dos cinco filmes consegue ser o mais contundente na crítica social. O diretor Cho Ku-jang, 43 anos, narra a história de Sang-hoon (Lee Sung-min), um homem que recém se mudou para um prestigiado condomínio na companhia da esposa e da filha pequena. A altas horas de uma noite, ele ouve o grito de uma mulher e vai até a janela do apartamento, de onde testemunha uma violenta agressão. Sang-hoon pensa em chamar a polícia, mas fica intimidado quando percebe que o agressor fez contato visual. A partir daí, o personagem principal passa a ser caçado pelo bandido – que não deixa de ser uma representação de sua própria culpa. The Witness nos pergunta: em uma sociedade individualista e regida pelas aparências, o que faríamos se alguém gritasse socorro? A cena final, que poderia acontecer em qualquer complexo de edifícios brasileiro, é muito marcante.
Tempo de Caça (2020)
Concorrente no último Festival de Berlim, o filme escrito e dirigido por Yoon Sung-hyun, 37 anos, se passa em um futuro próximo, em que a crise financeira derrubou a Coreia do Sul – os cenários são zonas industriais decadentes, favelas e ocupações, bem familiares para o público brasileiro. O protagonista, Jun Seok (Lee Je-hoon), é um jovem que, após três anos de prisão, reencontra os amigos Ki Hoon (Choi Woo-shik, o filho pobre de Parasita) e Jang Ho (Ahn Jae-hong) e elabora um plano: assaltar um cassino clandestino e fugirem todos para um local tipo o Havaí, mais caloroso e colorido do que a realidade fria e cinzenta. Mas eles acabam entrando na mira de um assassino impiedoso (Park Hae-soo, do seriado Manual do Presidiário) – que pode ser encarado como a consciência de Jun Seok de que o sistema não permite ascensão, ou de que, como diz o pai pobre em Parasita, a vida nunca funciona como o sonhado para pessoas como eles ("O melhor plano é não ter planos", afirma Ki-taek no filme oscarizado. "Sem planos, nada pode dar errado. Se algo fugir do controle, não importa").
A estética e o ritmo narrativo são personagens à parte em Tempo de Caça. Em uma cenografia inóspita, com um jogo de luzes que traduz o "sentimento" da cena e uma sonorização opressiva (cada toque no corpo se faz ouvir), a trama, em seu início, é conduzida lentamente. Há um propósito: os laços entre os "ladrões por sobrevivência" precisam estar bem reconstituídos, porque é isso o que pode sustentá-los quando a noite cair sobre eles.