O gato caça e amassa o rato, que revive e revida. Ambos estão condenados a repetir esses papéis, em um looping eterno e hipnótico: as páginas de Squeak the Mouse têm todas a mesma estrutura, 12 quadrados simetricamente dispostos, e as cores são berrantes e chapadas, como se estivéssemos assistindo àqueles desenhos animados dos anos 1940 e 1950, inspiração para a obra do italiano Massimo Mattioli.
Eis um artista a um só tempo sádico e sensível. Por um lado ele impõe a seus personagens toda sorte de horror – espancamento, mutilação, enforcamento, incineração, esquartejamento, desintegração. Por outro, mostra-se um autor atento à sua época, aos anseios e às desilusões e às transformações da sociedade, como tão bem analisado pelo artista plástico e quadrinista Rafael Campos Rocha na introdução desta luxuosa e luxuriante compilação de todas as histórias da série publicada originalmente na década de 1980, lançada, via Veneta, pelas mãos do mesmo editor – Rogério de Campos –, que trouxera esse Tom & Jerry para adultos ao Brasil, na saudosa e ousada revista Animal (a capa, inclusive, reproduz a da edição número 6, de 1989).
Trata-se de um texto intimidador, o de Campos Rocha. Com genialidade e alto poder de estabelecer conexões, ele recupera o surgimento de Squeak the Mouse, na revista italiana dos anos 1980 Frigidaire, retrata as características de Mattioli, hoje com 75 anos, e de seus compatriotas contemporâneos – como Lorenzo Mattotti, de Fires (1986), e Andrea Pazienza, de Pompeu (1988) – e reflete sobre arte e ideologia, sobre o pós-modernismo e sua palavra de ordem, a citação, sobre como o gato e o rato ilustram “a vida reduzida ao estado da natureza: necessidade, medo e morte. Mas sequer o consolo da morte acode esses personagens, que revivem de catástrofes impossíveis para sofrerem novamente todo tipo de transtorno, em busca da sobrevivência. Não da vida, da sobrevivência. O próprio neoliberalismo feito imagem”.
Devidamente instruído, o leitor com mais de 18 anos verá na sequência as três aventuras de Squeak the Mouse, cada uma dividida em quatro a seis partes, com títulos que aludem a filmes B, todas repletas de horror e de sexo e vazias de diálogos e de descanso. Mattioli flagra com apuro o nascente imediatismo, que se tornaria marca das décadas subsequentes até virar hegemônico com o advento das redes sociais. Nos seus quadrinhos, ninguém evoca a memória ou faz planos, todos vivem um presente avassalador e incessante. Os raros momentos de algum sossego são destinados a buscar alívio em prazeres igualmente momentâneos, como o sexual, curtido a pleno por gatos e ratos, que transam sem amarras nem convenções enquanto não surge um biltre munido com uma motosserra ou ácido.
Nossa enorme capacidade e nosso incrível talento para infligir o mal aos outros acaba despertando o interesse extraterreno. Na última história, o gato e o rato são abduzidos para servirem como astros de um show de tortura comandado por uma raça alienígena. Desesperados, empreendem uma sangrenta vingança e fogem – para começarem tudo de novo. É como um vício do qual não conseguimos escapar, uma droga, uma discussão no Facebook, um relacionamento abusivo, um cacoete comportamental, o pendor ao extremismo político, uma urgência pelo devaneio do poder. Squeak the Mouse funciona como um ardente espelho de males (e de sonhos) variados, transcendendo a aparente pura e vil exposição de violência e despudor para alçar-se à condição de um clássico permanente.