De Barbarella (1962) a Shangri-la (2016), passando por Valerian (1967), O Perfuraneve (1982) e O Incal (publicada ao longo da década de 1980), a ficção científica francesa é um gênero à parte na história dos quadrinhos. Hábeis inventores de viagens espaciais e futuros distópicos que funcionam como espelhos da sociedade contemporânea, autores e desenhistas como Jean-Claude Mézieres, Moebius, Jean-Pierre Dionnet, o iugoslavo Enki Bilal e o chileno Alejandro Jodorowsky tornaram-se paradigmas e influenciaram o cinema sci-fi americano _ vide Star Wars (1977), Alien, o 8º Passageiro (1979), Mad Max (1979) e Blade Runner, o Caçador de Androides (1982).
Para o público brasileiro, uma importante lacuna acaba de ser preenchida: a editora Pipoca & Nanquim lançou, em um volume único, as cinco aventuras de Lone Sloane, o solitário cavaleiro sideral criado por Philippe Druillet, um dos cofundadores da célebre revista Métal Hurlant e reconhecido pelo cineasta americano George Lucas como inspiração para a longeva saga jedi.
— Sua influência é incalculável — diz Daniel Lopes, um dos três sócios editores da Pipoca & Nanquim. — Vai dos quadrinhos underground (ao confirmar que não há limites e o que importa é a imaginação) passando pelos comics americanos de super-heróis (muitas das sagas cósmicas da Marvel e da DC beberam da fonte) até chegar aos mangás (existe uma ponte muito sólida entre Japão e França quando o assunto é HQ). Também é percebida no cinema. George Lucas, Ridley Scott e George Miller são fãs confessos do trabalho de Druillet, só para citar alguns diretores (leia, abaixo, mais trechos da entrevista).
Lone Sloane reúne histórias produzidas entre 1966 e 2012. A luxuosa edição faz jus ao status de obra de arte: cada página poderia estar emoldurada em uma galeria. As palavras não são imprescindíveis. Pelo contrário: por vezes, até atravancam a leitura e freiam a viagem psicodélica proporcionada por Druillet, apelidado de "arquiteto espacial" por causa de seus cenários gigantescos em que funde o barroco, a art noveau e a art déco, templos indianos, catedrais góticas e deuses egípcios, a Odisseia de Homero, os pesadelos de H. P. Lovecraft e a geometria impossível de M. C. Escher.
Não à toa, é a suas imagens que se referem os convidados que dão estofo em prefácios e um posfácio. René Goscinny, coautor de Asterix, diz que Druillet "libertou as HQs das delimitações de seus painéis estreitos". O belga Hergé, criador do jovem repórter Tintin, afirma que o artista francês atingiu a "dimensão onírica", com desenhos "meticulosos e deslumbrantes, nas quais tudo se funde e explode em uma espécie de delírio gráfico". Para Dionnet, "ele inventou as formas do futuro que se tornaram as do presente, com seus personagens de olhos vermelhos incendiados por incontáveis visões do apocalipse. Criou novos deuses com enormes bocas abertas, encarnações do caos e da entropia que nos devoram diariamente".
Druillet, que completará 75 anos em junho, fez de Lone Sloane não apenas um campo de experimentação visual, mas também um palanque político e um divã particular (em Gail, por exemplo, ele reflete sobre a morte prematura da primeira esposa, Nicole, que inclusive aparece em fotografias inseridas nos desenhos). De natureza episódica, a primeira parte, As Seis Viagens de Lone Sloane, situa o leitor no universo imaginado pelo quadrinista francês, apresenta seu ideário rebelde e vai acostumando o olhar a uma diagramação que, aos poucos, deixa de obedecer qualquer tipo de regra.
É na segunda parte, Delirius, coescrita por Jacques Lob (o mesmo de O Perfuraneve), que encontramos a narrativa mais coesa e menos confusa – aliás, não raro a HQ flerta com o incompreensível. Passa-se em um planeta enlouquecido, "regido pelo dinheiro, pela violência e pela corrupção, uma fonte de renda inesgotável para o imperador e seus lacaios". O lugar convida os visitantes a morrer de prazer, atraídos por cassinos suntuosos, celas de sonho, templos de devassidão e arenas sangrentas. Uma seita nada santa, a Redenção Rubra, contrata Sloane para roubar o tesouro imperial e, assim, liquidar com o seu poder. Mas o terráqueo tem seus próprios planos.
Eis uma das mensagens que Druillet quer passar: a de sua torcida pelo indivíduo na luta contra o destino, o Estado e toda sorte de conservadorismo. Na introdução de Gail, ele chega a dizer: "No mundo de hoje, em que os países se digladiam, cada qual querendo ter o pau maior do que o do vizinho, a vertigem da estupidez nunca nos ameaçou tanto". Por trás do ódio e da guerra retratados em Lone Sloane, por trás das trevas e dos monstros, há um artista paradoxalmente esperançoso. Delirius 2 termina com uma personagem dizendo: "Bom, parece que milagres existem mesmo". Em Caos, o sexo – e, por extensão, o amor – ressuscita Sloane para o duelo contra o imperador Shaan, que se anuncia como um reflexo do próprio herói 300 anos mais velho. Sloane decide renunciar a esse futuro sombrio e convoca a figura feminina que o trouxe de volta à vida, a Lenda, para "trespassar a besta com seu canto" – é a arte a arma contra o que há de ruim no mundo, contra os demônios que nos afligem, sejam eles internos ou externos. "Shaan, um outro mundo está se formando agora sem você, sem seu ódio", diz a Lenda. As palavras finais, embebidas em otimismo, são de Sloane/Druillet, que prega: "Vamos. Em direção à luz...".
"Sua influência é incalculável", diz editor
Sócio de Alexandre Callari e Bruno Zago na editora e no canal do YouTube Pipoca & Nanquim, Daniel Lopes concedeu entrevista por e-mail sobre o lançamento de Lone Sloane:
Por que publicar Lone Sloane?
A proposta da editora Pipoca & Nanquim é trazer para o público brasileiro obras importantes, paradigmáticas e necessárias. Existem muitas lacunas em nosso mercado de livros envolvendo alguns grandes nomes dos quadrinhos, e Philippe Druillet era um deles. Lone Sloane é a melhor porta de entrada a sua arte.
Qual é o legado de Druillet? Onde se pode ver sua influência?
Existem os quadrinhos antes e depois da dupla Druillet e Moebius (lembrando que foi por influência do primeiro que Jean Giraud se transformou em Moebius e cravou definitivamente seu nome na história). Ambos mostraram que não há limites para as HQs. Não há necessidade de requadros nem estruturas fixas de páginas, não há nenhum tema que não possa ser abordado... A única coisa que pode deter um quadrinista é sua imaginação.
Sua influência é incalculável. Vai dos quadrinhos underground (ao confirmar que não há limites e o que importa é a imaginação), passando pelos comics norte-americanos de super-heróis (muitas das sagas cósmicas da Marvel e da DC beberam da fonte), até chegar aos mangás (existe uma ponte muito sólida entre Japão e França quando o assunto é HQs, mas isso é papo para outra hora…).
Também é percebida no cinema. Em toda a saga Star Wars, na franquia Alien, em Mad Max… George Lucas, Ridley Scott e George Miller são fãs confessos do trabalho de Druillet, só para citar alguns. Só aí já dá para ter uma noção do impacto que o quadrinista causou.
Há quem diga que Lone Sloane independe do texto, que o importante ali é a arte e a inovação visual. Qual é a sua opinião?
O visual definitivamente chama a atenção. É a primeira coisa que se nota e a mais marcante, pois praticamente toda página é arrebatadora. Isso já um grande mérito, claro. Mas é importante se atentar também ao texto dele. É um autor que tem muito a dizer, consegue fazer suas críticas e colocar seus ideais em tramas que não esquecem de desenvolver os personagens; tem senso de humor e é muito sensível e sincero. Acredito que o impacto que causou repercute até os dias de hoje pois não fica apenas na superfície do visual, tem muito conteúdo ali.