Há pelo menos seis pontos de conexão entre dois gibis americanos que estão saindo no Brasil por editoras diferentes – os primeiros volumes de Oblivion Song, Canção do Silêncio, da Intrínseca (144 páginas, R$ 49,90), e Black Science, Como Cair para Sempre, da Devir (176 páginas, R$ 65).
1) Ambos são séries recentes (um mais do que o outro, é verdade: o primeiro começou em setembro passado, e o segundo, em novembro de 2013) da Image, a editora surgida nos anos 1990 por iniciativa de artistas da Marvel e da DC que queriam produzir gibis autorais; que durante um tempo ficou marcada por HQs em que havia muita ação e pouca reflexão; e que hoje é a casa de alguns dos quadrinhos mais elogiados por crítica e público, como Saga, de Brian K. Vaughan e Fiona Staples, Gideon Falls, de Jeff Lemire e Andrea Sorrentino, e Kill or Be Killed, de Ed Brubaker e Sean Phillips.
2) Ambos trazem a assinatura de roteiristas quarentões que são chegados em matar um monte de personagens, Robert Kirkman (Oblivion Song), 40 anos, e Rick Remender (Black Science), 46. Os dois já trabalharam para a Marvel, onde engendraram versões monstruosas dos super-heróis – o primeiro transformou em zumbis Homem-Aranha, Wolverine, Capitão América e Surfista Prateado, entre outros, e o segundo transformou em Frankenstein o Justiceiro, na famigerada fase Franken-Castle, um trocadilho com o nome civil do vigilante, Frank Castle. Hoje, gozam de status junto aos produtores de TV e streaming (um mais do que o outro, é verdade: duas HQs de Kirkman já foram adaptadas para seriados, a longeva The Walking Dead, que gerou um spinoff, Fear the Walking Dead, e Outcast, e uma terceira está anunciada, Invincible; Remender é o criador de Deadly Class, cuja primeira temporada estreou em janeiro, e de The Last Days of American Crime, que vai virar filme da Netflix).
3) Ambos são ilustrados por artistas italianos emergentes – um mais do que o outro, é verdade: Lorenzo de Felici, de Oblivion Song, ainda é pouco conhecido. Seu traço é mais redondo e, especialmente nos rostos, lembra a arte de Jeff Lemire e Dean Ormston, embora seja mais realista e detalhista nos objetos de cena. Matteo Scalera, de Black Science, já provoca mais ressonância, por ter desenhado personagens como Batman, Deadpool e os Vingadores Secretos. Seu traço é mais sujo, e seus personagens angulosos remetem a Sean Murphy. O trabalho de colorização amplia a distância entre os dois: em Oblivion Song, a italiana Annalisa Leoni é suave e investe em um certo monocromatismo agradável. Em Black Science, Dean White pesa mais a mão – os tons são frios, mas o gibi é escuro.
4) Em ambos, os protagonistas são cientistas que viajam a mundos paralelos para salvar sua família (um mais do que o outro, é verdade). Em Oblivion Song, Kirkman reprisa o cenário pós-apocalíptico de The Walking Dead e Zumbis Marvel. Aqui, 300 mil habitantes da Filadélfia, nos EUA, foram jogados em Oblivion (esquecimento, em inglês), uma dimensão inóspita. Dez anos depois, Nathan Cole tenta dar seguimento a um trabalho abandonado pelo governo americano: o de resgatar as vítimas – entre elas, seu irmão, Ed. Em Black Science, o desafio de Grant McKay, líder da Liga Anarquista de Cientistas, é maior – vou copiar a bombástica sinopse da contracapa: "Ele decifrou a Ciência Sombria e abriu caminho através das barreiras da realidade com a sua criação, o Pilar. Mas algo deu errado, e agora Grant e a sua equipe estão perdidos, perambulando pela vastidão sem limites do Sempreverso, fantasmas vivos naufragados em um oceano infinito de mundos alienígenas".
5) Ambos os protagonistas precisam enfrentar monstros, traições e os próprios erros e dilemas (um mais do que o outro, é verdade). Nathan Cole tem de lidar com a falta de apoio do governo, que quer interromper suas incursões, com a culpa que sente em relação ao irmão e com a recusa de salvamento por algumas pessoas – em Oblivion, elas têm uma rara segunda chance de recomeçar do zero, apagar seus pecados, serem melhores (Kirkman é eficiente em propor ao leitor um "e você, o que faria?"). Grant McKay encara todo tipo de criatura, desde sapos gigantes a soldados alemães, passando por índios com machadinhas laser. Seus grandes inimigos, no entanto, estão bem mais próximos: Kadir, o financiador do projeto, parece manter uma agenda secreta e diferente da sua; e o próprio Grant também procura sua segunda chance, um mundo onde ele não "ferrou" tudo ao ficar obcecado pela ciência sombria, onde ajudou sua esposa, Sara, a criar os filhos, onde não a traiu com uma integrante da equipe, Rebecca.
6) Ambos deixam o leitor um tanto confuso – em um mais do que no outro, é verdade. Em Oblivion Song, Kirkman adota tática semelhante à de The Walking Dead: não há um narrador onisciente, nem mesmo monólogos interiores, então tudo o que sabemos é o que os personagens falam – o quanto podemos confiar neles? Vamos tateando até compreendermos o que está acontecendo, como funciona a tal "transferência" e o que existe em Oblivion (a propósito, os desenhos de Felici nessa dimensão aumentam a dúvida: seus monstros se misturam aos cenários). Com Black Science, é praticamente o oposto: há múltiplos narradores e muitos monólogos interiores, mas a linguagem por vezes é cifrada ou mesmo extraterrestre, o tal Sempreverso é difícil de entender, há um momento em que surge um outro Grant McKay, portanto, é um alívio quando Remender permite-se ser um pouco didático _ por exemplo, sobre "a pedra fundamental da infinitologia": "A teoria que diz que tudo que você puder imaginar existe em alguma camada do Sempreverso. Chamamos esse construto de A Cebola. Camada sobre camada de dimensões paralelas. Cada camada representa um incalculável número de realidades, cada uma delas criada a partir das escolhas feitas por todos os seres vivos no universo. Assim que forem mapeadas, poderemos encontrar soluções para todos os problemas que a humanidade enfrenta".
Ambição, eis outro ponto que conecta os dois anti-heróis.