Antes de mais nada, devo dizer que sou o melhor ou o pior leitor para Projeto Manhattan, série da Image Comics que está sendo lançada no Brasil pela editora Devir (o quarto volume dos cinco que compõem a série acaba de chegar às livrarias e lojas online, preço médio de R$ 49). Porque desconheço os outros trabalhos do roteirista Jonathan Hickman, incluindo sua incensada passagem pelos Vingadores, da Marvel, e seu elogiado faroeste futurista East of West, também pela Image. Portanto, não sei se ele se repete em Projeto Manhattan ou se está dando desenvolvimento a temas já tratados, dando consistência a sua obra – só sei que meu amigo estava certo em insistir para que eu lesse.
Também sou o melhor ou o pior leitor porque, embora não seja uma anta em matéria de II Guerra Mundial, a bomba atômica e a corrida espacial entre EUA e URSS, tampouco posso dizer que seja um profundo conhecedor de seus bastidores, o palco, por assim dizer, da ação de Projeto Manhattan. Isso, se por um lado me deixa tateando no escuro em algumas cenas, por outro amplifica minha suscetibilidade ao fascínio: às vezes, é prazeroso não saber o que é ficção e o que é verdade.
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Eis uma HQ para ler com o Google por companhia, já que Hickman emprega um elenco baseado em uma série de personagens reais. Temos o general dos EUA Leslie Groves, que repete no gibi seu papel na História: o de principal líder militar do Projeto Manhattan, criado para desenvolver a bomba atômica na II Guerra Mundial. Temos Joseph Oppenheimer, o fictício irmão gêmeo do físico americano Robert Oppenheimer, considerado o pai da bomba. Temos uma versão casca-grossa do gênio Albert Einstein. Temos o cientista espacial alemão Wernher Von Braun, o físico italiano Enrico Fermi, o astronauta russo Yuri Gagarin e até a cadela Laika, entre outros tantos personagens de moralidade distorcida (o meu favorito, devo admitir, é o mais certinho deles, Harry Daghlian – mas certinho nos modos, digamos: vítima de um acidente com radiação, o cara é um esqueleto dentro de um traje de contenção).
Essa gente aventura-se pelo universo da II Guerra Mundial e da Guerra Fria recriado por Hickman, que parte de um princípio desprezado pela Devir na tradução para o Brasil: o título original de Projeto Manhattan é Manhattan Projects, Projetos Manhattan. A bomba atômica seria apenas a superfície, a história que as pessoas conhecem – os Projetos Manhattan vão além, lidando com viagens espaciais, invasões alienígenas, torii (os tradicionais portões japoneses) que teletransportam robôs samurais, homens reconstruídos a partir de próteses mecânicas e toda sorte de ciência misturada a magia, sempre sob a sombra da mão grande e cruel dos governantes do mundo (seja o Estado, seja o Mercado, seja a Igreja).
Parece um detalhe, mas a omissão dessa letra S, se não torna menos caprichosa a edição da Devir, subtrai do leitor uma pista sobre a noção de plural permeia toda a HQ. Nenhum personagem é apenas um – chega a haver uma guerra civil de personalidades na mente de Oppenheimer. De novo, Hickman casa contexto histórico com discurso artístico. Se por um lado o enredo recheado de agentes duplos e traições remete ao ambiente da Guerra Fria, por outro retoma um tema frequente das narrativas de ficção científica, tão bem definido no clássico O Médico e o Monstro: o do cientista que sucumbe à perversidade, o lado sombrio de mentes brilhantes.
Extrapolando, também devemos estender essa pluralidade para a própria feitura de Projeto Manhattan. Não se trata de uma "HQ de Jonathan Hickman", à moda do que costumamos dizer dos títulos assinados por roteiristas prestigiados (como que esquecendo que uma HQ é, inexoravelmente, um casamento entre texto e imagem). Muito de seu encanto e de seu espanto são méritos do desenhista Nick Pitarra e das coloristas Cris Peter (gaúcha que estabeleceu o tom cromático do gibi em sua primeira história) e Jordie Bellaire (americana que assumiu as tintas a partir do segundo número). Os artistas colaboram para o suspense e o humor pretendidos por Hickman. O jovem Pitarra, até então pouco conhecido pelo menos por aqui (ou pelo menos por mim), desponta como um nome a quem se deve prestar atenção. Percebi em seu traço um misto de suavidade e grotesco, o que me fez lembrar de Moebius, Geof Darrow e Frank Quitely. Pois bem: lembram que falei que o Google era um bom companheiro de leitura? Pesquisei e confirmei – Moebius, Darrow e Quitely estão entre as grandes influências de Pitarra. O interessante é que também parece haver uma aproximação temática entre os artistas (vide o clássico O Homem É Bom?, de Moebius, À Queima-Roupa, parceria de Darrow com Frank Miller, e Grandes Astros: Superman, que Quitely produziu com Grant Morrison): todos transitam pela ficção científica que reflete sobre os limites do homem e questiona os avanços da ciência e da tecnologia. Não à toa, a contracapa de Projeto Manhattan traz uma única inscrição: "Ciência. Ruim."