Em 1999, a coletânea Comic Book – O Novo Quadrinho Norte-Americano apresentou ao Brasil dois autores que eram então talentos emergentes da cena alternativa nos Estados Unidos. Embora não fossem contemporâneos, Daniel Clowes, nascido em 1961, e Adrian Tomine, de 1974, compartilhavam características, como o emprego da primeira pessoa e do formato de diário nas histórias (apesar de não serem autobiográficas), o olhar desencantado para a vida em família e em sociedade, o senso de humor temperado por acidez e melancolia, o jeito estranho ou reprimido de os personagens lidarem com as pulsões sexuais. A proximidade era inclusive física. A pequena biografia de Tomine informava que ele, na época, morava em Berkeley (Califórnia), na mesma rua de Clowes.
De lá para cá, um deles compareceu com assiduidade ao mercado brasileiro, enquanto o outro permanecia distante até agora. Simultaneamente, a editora Nemo lança David Boring – quinto título solo de Clowes no país, depois de Como uma Luva de Veludo Moldada em Ferro, Ghost World, Wilson e Paciência – e Intrusos, primeiro livro individual de Tomine por aqui.
David Boring é um trabalho mais antigo de Clowes, lançado em 2000, quando o quadrinista ainda era bastante comparado ao cineasta David Lynch – por causa da prevalência do surrealismo, do pendor para o enigma, do carinho para com o absurdo e o bizarro, da dualidade de seus personagens, do caráter transformador do sexo, do questionamento a respeito da realidade.
Todos esses elementos estão presentes nessa HQ, cujo protagonista homônimo, filho de um obscuro cartunista, é um vigia de 19 anos obcecado por uma parte específica do corpo feminino, idolatrada em um livro secreto de recortes. Sua vida entediante (boring, em inglês) muda radicalmente quando David recebe a visita de um ex-colega de escola – afinal, “não dá para confiar de verdade em um cara que se lembra de cada detalhe vergonhoso de sua adolescência” – e conhece Wanda, a garota dos seus sonhos (e de seu prazer egoísta). É o ponto de partida para um vórtice de emoções, taras, crimes e humilhações, pontuado pelas reflexões certeiras de Clowes acerca de quem somos no íntimo: “Não consigo decidir se preciso de ajuda ou se sou apenas tão fodido quanto o resto das pessoas. Tem alguma coisa de errado em ser um pouco obsessivo?”.
Seis contos concisos sobre masculinidade tóxica
A comparação de David Boring com Intrusos expõe pontos de desconexão entre Clowes e Tomine. Enquanto o primeiro permite-se extrapolar para o fantástico e até delirar, o segundo tem uma pegada mais realista ao investir em situações do cotidiano e nas relações familiares. Enquanto Clowes produz narrativas longas, Tomine especializou-se no conto e na contenção – já foi considerado o Raymond Carver (1938-1988) dos quadrinhos, em alusão ao minimalismo do autor de Short Cuts, e cita como uma de suas referências John Cheever (1912-1982), o “Tchekhov dos subúrbios americanos”.
— Tomine une essa tradição de contistas à influência da ilustração editorial, mercado em que ele atua, fazendo capas para a revista New Yorker e para discos de bandas como Weezer e Yo La Tengo. Assim, aprimorou a arte de contar histórias só com uma imagem e sem palavras — diz o tradutor do livro, o pelotense Érico Assis. — É extremamente enxuto, tanto no texto quanto no desenho. Sabe escolher muito bem as cenas para revelar o personagem e parece levar três dias para traçar uma linha (leia a entrevista completa logo abaixo).
Outra virtude que sobressai na leitura de Intrusos é a versatilidade artística de Tomine. Cada um dos seis contos tem um estilo próprio. Breve Histórico da Arte Conhecida como “Hortescultura”, por exemplo, é uma comédia agridoce e cartunesca em formato que emula uma série de tiras de jornal. Em Tradução do Japonês, nunca vemos os personagens em cena: há apenas a alternância de panorâmicas e zooms em um avião, no aeroporto e nas ruas de uma cidade californiana – uma contemplação que, por sua vez, contrasta com a divisão em até 20 quadros das páginas de Triunfo e Tragédia, recurso que não apenas dá agilidade à trama, como simboliza o sufocamento emocional da protagonista.
Há uma temática, contudo, que perpassa o livro inteiro: como bem apontou o crítico americano Douglas Wolk, todos os contos tratam de homens que se intrometem e estorvam a vida de mulheres. São intrusos como o agora solitário militar que invade a casa onde morava; o pai sarcástico que menospreza e ridiculariza a filha adolescente, insegura e gaga, que decide fazer carreira como comediante stand-up; o traficante de drogas alcoolista e fã de beisebol que se aproxima, como um insuspeito predador, de uma garota vítima de um relacionamento abusivo.
Homens que anulam, exploram, roubam – em Amber Sweet, uma jovem teve a juventude tolhida e sofre assédio por ser uma sósia de uma atriz pornô; em “Hortescultura”, a esposa de um jardineiro entrega toda a sua empatia em troca do devaneio artístico do marido, mimado e grosseiro; em Tradução do Japonês, uma mãe escreve uma carta ao filho tentando entender a separação:
"Queria saber com que idade você está agora que lê esta carta. Há quanto tempo eu me fui? Você acredita que seus pais chegaram tão perto de não serem mais um casal?".
Um papo com o tradutor gaúcho Érico Assis
Pelotense de 39 anos, Érico Assis faz cerca de 50 traduções por ano entre gibis e livros. Por e-mail, ele falou sobre a obra de Adrian Tomine e a comparação com Daniel Clowes:
Em 1999, uma coletânea da Conrad apresentou Adrian Tomine ao público brasileiro, mas, de lá pra cá, só agora ele está tendo um livro solo lançado no Brasil. Como tradutor de Intrusos e de tantos outros quadrinhos, você arrisca alguma explicação para essa longa demora?
Olha, fora a possibilidade de algum impedimento que eu desconheço (questões editoriais, negociações etc.), foi um cochilo das editoras brasileiras. É estranho Tomine ter ficado de fora desses 20 anos de quase sincronia entre a nata das graphic novels dos EUA e a seleção de editoras como Conrad, Barba Negra, Companhia das Letras, Nemo, Mino, Darkside e outras. Ele é bastante conhecido nos EUA e na Europa, os temas que ele trabalha se traduzem tanto quanto o de colegas que já chegaram aqui (Clowes, Ware, Chester Brown, Seth etc.) e acho até que o estilo dele é conhecido no Brasil, por conta de suas ilustrações, capas de discos (Weezer, Yo La Tengo, Eels). Então, não sei o que houve e agradeço à Nemo por ser a primeira a apostar em Tomine.
Para o site Vitralizado, você falou sobre a dificuldade para traduzir o título original, Killing and Dying. Gostaria que você contasse sobre a escolha que teve de fazer. Por que, no fim, optou -se por Intrusos, título de outro conto?
O texto explica todo o processo, mas, em resumo: Killing and Dying é o título de outro conto e é uma expressão difícil de traduzir porque, no conto, tem duplo sentido (além de "matando e morrendo", faz referência ao universo das comédias stand-up); outras edições estrangeiras batizaram o livro de Intrusos; o conto Intrusos é, segundo vários críticos, o melhor da coleção; e, o mais importante: dá pra dizer que a temática que atravessa os contos é a dos homens intrometidos nas vidas de mulheres.
Qual você acha que é a maior virtude de Tomine? Qual é a marca que ele vai deixar ou já deixou nos quadrinhos?
No momento, ele é um grande contista. E um contista dos quadrinhos, que é algo raro. Por um lado ele segue a tradição de contistas do cotidiano que vêm da literatura, como John Cheever, Alice Munro e outros – muitos críticos já fizeram esta comparação. De outro, se vê nele uma influência forte da ilustração editorial – é o mercado em que ele atua, fazendo capas para a New Yorker – e, com isto, de contar histórias só com uma imagem e sem palavras. O resultado disso é um estilo extremamente enxuto, tanto no texto quanto no desenho, na própria quadrinização, de histórias contadas com uma leveza impressionante. Parece que ele usa o mínimo possível em tudo. Ele sabe escolher muito bem as cenas para revelar o personagem e ainda assim deixar você entender o personagem a fundo. Digo "no momento" porque ele já tem uns 30 anos de carreira. Começou bastante precoce, com uns 16, fez parte de uma geração de autores realmente independentes – você faz, você publica, você imprime, você distribui – que queriam fazer HQ diferente do que se via de tradicional nos EUA. Histórias sobre relacionamentos, sobre adolescência e início da maturidade, intimistas como a literatura ou estudos de personagem como se via no cinema indie. Ele fez muito disso até lapidar o estilo que se vê em Intrusos.
A Nemo está publicando neste mês também David Boring, de Daniel Clowes, uma das influências assumidas de Tomine no começo da carreira. O que você como pontos de conexão? Onde eles se distanciam?
Assim como em todo mundo, dá para ver pitadas de várias referências dos quadrinhos no estilo do Tomine, como irmãos Hernandez, Chris Ware, Yoshiro Tatsumi e, claro, o Clowes. Clowes, a meu ver, é mais "gritante" que Tomine, tanto no estilo gráfico quanto nos temas que escolhe. Não vejo Tomine fazendo um David Boring nem Paciência, pois são histórias que almejam muito alto em relação a trama e temas. Por outro lado, Clowes fez alguns quadrinhos mais intimistas, de estudos de personagem, que poderiam ser do Tomine, como Ghost World.
Você já leu outras obras do Tomine? Quais recomenda e por quê?
Sim, li outras coleções de contos e a única graphic novel dele, Shortcomings. Não recomendo um em específico porque todos seguem um mesmo estilo de contar histórias em que acho que você deve entrar e ficar por lá. Gosto muito de quando ele faz humor – e tem muitas cenas de humor em Intrusos – e por isso gosto bastante de um livrinho dele chamado Scenes from an Impeding Marriage. É autobiográfico e tem várias historinhas sobre o planejamento do casamento do Tomine. Aliás, foi a lembrança que ele e noiva distribuíram no casamento, depois lançada em livro.