Marcello Quintanilha é um craque tipo exportação do quadrinho nacional. Mora em Barcelona desde 2002, ganhou, por Tungstênio, o troféu de melhor história policial no tradicional Festival de Angoulême, na França, em 2016, e o prêmio Rudolph Dirks nas categorias sul-americanas de roteiro e arte, na Alemanha, em 2017, e lançou antes na Europa seu novo romance gráfico, Luzes de Niterói, agora editado no Brasil pela Veneta. Ah, e para vê-lo em campo, o público precisa pagar ingresso de Champions League: o livro custa R$ 109,90.
A analogia com o futebol não é gratuita. O quadrinista de 48 anos tem uma forte ligação com o esporte. Para começar, é filho de um ex-jogador, Hélcio Carneiro Quintanilha, cujas experiências inspiraram o livro de estreia de Marcello, Fealdade de Fabiano Gorila (1999), que revê o suicídio do presidente Getúlio Vargas, em 1954, pelos olhos de um jovem que retorna para Niterói após um teste cancelado no Fluminense. Hélcio também empresta nome e memória ao protagonista de Luzes de Niterói.
A história se passa nos anos 1950. Beque direito (o equivalente ao lateral-direito de hoje, mas, na época, com funções estritamente defensivas), Hélcio havia acabado de ascender na carreira – trocara o time da Companhia Manufatora Fluminense de Tecidos pelo Canto do Rio Foot-Ball Club, o Cantusca, o mais popular da cidade. De agora em diante, seria briga contra cachorro grande: boa parte da ação transcorre na véspera de uma partida contra o Vasco pelo Campeonato Carioca. Hélcio e seu melhor amigo, o corcunda Noel, flagram um caso de pesca ilegal com dinamite na Baía da Guanabara e resolvem recolher peixes para revendê-los em uma feira.
Todo o negócio precisa ser rápido, para que o jogador chegue a tempo na concentração do Canto do Rio. Mas as coisas não saem como o planejado. Haverá desafios impostos pela natureza (de um mergulho profundo a uma tempestade aterradora) e pelo homem – como um tenso encontro com os frequentadores de uma ilha de nudismo, uma referência à pioneira colônia comandada pela dançarina, atriz e escritora Luz del Fuego (1917-1967).
Ao retratar as coloridas desventuras de Hélcio e Noel ao longo de 232 páginas, Quintanilha lança mão de sua coleção de temas, características e virtudes. Estão lá o universo dos subúrbios fluminenses, visto em suas primeiras obras e no vigoroso Talco de Vidro (2015), e a prosa cotidiana, os diálogos cheios de coloquialismos e oralidade. O olhar preocupado e sensível para com personagens que, a partir de situações banais, acabam envolvidas em um turbilhão de desfecho imprevisível. A introspecção psicológica imbricada à ação física. A fragmentação, a suspensão e a dilatação do tempo.
Tudo isso contribui para que Luzes de Niterói nos ofereça sequências de tirar o fôlego – literalmente, como no perigoso mergulho empreendido pelo protagonista –, e momentos tão catárticos quanto fazer um gol. A vitória de Hélcio é a vitória de todos aqueles que não se limitam, que não se omitem, que ousam, que cruzam barreiras arraigadas na sociedade, que vão à frente nos diversos gramados da vida.
"Há um déficit dos elementos identitários do Brasil nos quadrinhos"
Por e-mail, Marcello Quintanilha concedeu a seguinte entrevista a GaúchaZH:
Luzes de Niterói é sua HQ mais longa. Suas obras nascem já sabendo até onde vão crescer ou isso é algo que aparece durante o processo de criação?
Definitivamente, é algo que ocorre durante o processo de criação. Me sinto muito confortável com a ideia de não saber para onde estou indo.
No mesmo sentido, em Luzes de Niterói é forte a sensação de que primeiro você escreve o que quer contar e depois faz os desenhos. É por aí?
Não, não há nenhuma estrutura organizada. Texto e desenho não são códigos separados na minha forma de pensar, portanto, trabalho a HQ como um todo.
O quanto de fatos reais e tintas autobiográficas tem o livro?
Difícil dizer. A imbricação entre realidade e criação é tanta que mesmo sequências completamente ficcionais poderiam ter ocorrido exatamente nos mesmos termos.
Você é um dos poucos artistas – não só dos quadrinhos – que encaram o futebol com a seriedade e a poesia que tanto lhe caem bem. Arrisca alguma explicação para que o esporte identitário do brasileiro seja tão ausente na nossa ficção?
Este é um fenômeno que ocorre não apenas com o futebol, mas com um leque de elementos identitários do Brasil, promovendo um déficit tanto iconográfico quanto temático, notavelmente no campo dos quadrinhos, onde poderiam encabeçar diversos gêneros. As razões podem ser múltiplas: intermitência da dinâmica do mercado, desinteresse, desconexão entre agentes da produção e o registro brasileiro, hiperengajamento em parâmetros de publicação estandardizados, enfim…
Os personagens Hélcio e Noel encarnam dois tipos históricos brasileiros: o malandro, que, acossado pela elite e pelas regras, “dá um jeito”; e o enjeitado, o pária social, excluído para sempre. Como as questões sociais impregnam suas obras?
É significativo que um jovem jogador profissional de futebol, que atua segundo suas circunstâncias enquanto indivíduo, seja enquadrado no estereótipo da malandragem ao dar vazão a sua natural impetuosidade juvenil. Isso talvez seja um sintoma de o quanto nos distanciamos de certos contextos históricos – no caso, o Brasil dos anos 1950 – em nome de uma série de generalizações com as quais estou em franco desacordo. As questões sociais presentes no meu trabalho dizem respeito ao elo intrínseco dos personagens com seu meio, a ponto de que o ambiente seja elevado à categoria de personagem, o que tem a ver também com minha conexão com o que me formou como pessoa.
Há uma fração do Brasil que não reconhece a média da população como parte de seu mesmo corpo.
Em que medida você considera importante a percepção de classes como aspecto definidor das dinâmicas da sociedade brasileira, retratada em sua obra?
Na medida em que o universo retratado nela abrange o corte econômico mais representativo da população brasileira, englobando ex-militares ou pequenos comerciários, funcionários de baixo escalão, empreendedores informais, em resumo, frequentemente identificados com a marginalidade, o que é chocante para mim, porque estas atividades não se encontram “à margem” da estrutura social, definindo o que muitas pessoas denominam “classe média baixa” ou “classe trabalhadora”. É possível que essa associação derive da forma crua e sem subterfúgios estéticos com que os relatos são desenvolvidos, o que nos obriga a admitir que há uma fração do Brasil que não reconhece a média da população como parte de seu mesmo corpo. A atuação dos personagens não corresponde ao papel que uma visão pré-concebida de mundo reservou a eles, mas sim ao de seres humanos, idiossincráticos, donos das decisões que transformam seus próprios destinos.
Outro traço marcante seu é o ouvido afiado para a linguagem coloquial e os regionalismos. Como é seu trabalho de pesquisa e por que isso é importante para você?
Sempre fui fascinado pela forma como a coloquialidade foi afinada por escritores como João Ubaldo, Mário de Andrade, Mário Filho ou Artur de Azevedo, nas célebres Revistas de Ano, na contramão da pasteurização com que as falas são tratadas nas HQs, muito em função das vicissitudes da tradução. Lidar com a coloquialidade é um aprendizado constante. A incorporação de gírias de época também é um passo na recuperação de um vernáculo particular, etapa constitutiva de nossa articulação atual, do qual me recuso a abrir mão.
Na comparação com sua obra inédita anterior, Hinário Nacional (2017), que investia bastante em elipses, simbolismos, metáforas visuais e jogos de palavras, Luzes de Niterói é mais direta, menos aberta a interpretações. Por exemplo, o fluxo de consciência na cena do mergulho estabelece claramente a relação com a carreira de Hélcio. Ao mesmo tempo, há uma série de notas de rodapé para explicar citações e expressões. Foi um desejo de não ser incompreendido?
Do meu ponto de vista, todas as minhas histórias são extremamente objetivas. Tudo é absolutamente consciente. Não tenho receio em ser incompreendido, porque parto do princípio de que qualquer pessoa é suficientemente inteligente para captar as nuances narrativas.
Ainda sobre as notas: ao meu ver, elas travam um pouco a espontaneidade dos diálogos.
Luzes de Niterói transcorre em um tempo específico, baseando-se em modos e costumes com os quais não todos os leitores estão familiarizados, o que pode configurar um entrave importante. As notas de rodapé permitem superar essa barreira, abrindo a possibilidade de um diálogo ainda mais espontâneo, reivindicando o caráter documental do álbum.
Você é um dos autores nacionais mais reconhecidos no Exterior. A que acha que isso se deve?
Não tenho uma resposta, porque meu trabalho não está elaborado para se encaixar em critérios editoriais consolidados em outros países. As motivações dos protagonistas, seus vínculos com o espaço público, suas crenças, além da lógica narrativa, concebida a partir da tradição literária brasileira, manifestam valores pouco difundidos entre os principais núcleos produtores de HQ. É um mistério. Talvez isso se deva à honestidade com que expresso as relações humanas.
O compositor Aldir Blanc já o apelidou de “Rossellini tupiniquim”, por conta de sua aproximação com a estética e a temática do neorrealismo italiano. Como o cinema influencia você?
O cinema me influencia de uma maneira muito profunda. Diretores como Vittorio de Sica, Rossellini, Lubitsch ou Orson Welles me marcaram permanentemente e inúmeras vezes procurei emular a atmosfera de muitos de seus filmes. A justaposição de ficção e realidade no caso do neorrealismo italiano, como em Roma Cidade Aberta, foi algo determinante.
Quem são os quadrinistas que você acompanha? Quem destaca no Brasil?
Schuiten (belga, desenhista da série Les Cités Obscures), Boucq (francês, conhecido pelo personagem Jerôme Moucherot), Cosey (suíço, autor da série Jonathan), Suehiro Maruo (japonês, de O Vampiro que Ri). No Brasil, destaco sempre André Toral (de Holandeses), maior representante de uma vertente das HQs brasileiras ligada ao mundo indígena, assim como à própria história do país.
O senso comum diz que as HQs estão muito caras, uma vez que parcela significativa do público valoriza edições luxuosas, com capa dura, papel cuchê etc. Isso, se por um lado denota o prestígio dos gibis como arte, por outro pode afastar a grande massa de um produto cultural que se pautava pela popularização. A gente de menos posses retratada em Luzes de Niterói dificilmente teria como pagar para se ver. Como você lida com essa situação?
Todos os bens culturais no Brasil são extremamente caros e as razões para isso são inúmeras. O apuro técnico das publicações se observou no mundo todo, lado a lado com a progressiva migração das HQs das bancas de jornal para as livrarias ou gibiterias, o que não significa que o foco de consumo tenha se deslocado de uma faixa da população para outra, mas sim que o mesmo público tradicionalmente interessado em quadrinhos passou a ter acesso a materiais considerados mais bem-acabados. O descenso de preços nesse cenário implica necessariamente a ampliação do público leitor, permitindo uma real popularização da linguagem, independentemente do acabamento dos álbuns. Todas as iniciativas nesse sentido são importantes, desde uma reforma no sistema educativo, passando pela promoção de eventos e iniciativas de fomento, expansão de bibliotecas e gibitecas, até uma veiculação que não se restrinja à impressão em papel.