Existe um momento em que desafio se torna intimidação. Pensei nisso ao ler comentários de duas revistas francesas reproduzidos na contracapa do livro mais recente do quadrinista Marcello Quintanilha, Hinário Nacional (editora Veneta, 2016, R$ 54 em média): "Quintanilha tem todas as qualidades: a ciência da trama, em forma de engrenagem; finesse na introspecção psicológica e, acima de tudo, a arte de um enquadramento dinâmico, flashbacks e dos diálogos realistas", escreveu a Lire. "A grande qualidade de Quintanilha é essa maneira de partir de acontecimentos banais e subir as apostas até um desfecho tão imprevisível quanto implacavelmente lógico", disse a Les Inrockuptibles.
Duas sínteses precisas do trabalho de Quintanilha, roteirista e desenhista nascido em Niterói (RJ), em 1971, e radicado na Espanha desde 2002. Precisas e desafiadoras: depois delas, o que acrescentar em uma resenha sobre as obras dele? Intimidantes – será que em algum momento ao longo do meu texto eu serei capaz de entabular um parágrafo digno de citação?A humildade me obriga a dizer não, acho que não. E, ao pensar no que pensei e escrever o que escrevi, acabei me vendo refletido na protagonista de Talco de Vidro (Veneta, 2015, R$ 59), a dentista Rosângela. Ao relatar a vocês minha inveja e minha ilusão de grandeza, também estou, palidamente, tentando espelhar um dos trunfos do autor, sua habilidade em desnudar o íntimo de seus personagens em uma narrativa espiralada, em fluxo de consciência e com transitoriedade temporal. O que me faz recuar de Talco de Vidro para Tungstênio (Veneta, 2014, R$ 59), sua primeira HQ mais longa – depois de se destacar em histórias curtas, como aquelas de Sábados dos meus Amores (Conrad, 2009).
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O cenário é Salvador, onde Quintanilha acompanha, de muito perto, quatro personagens: Ney, um ex-sargento do Exército, que encasqueta de desbaratar um crime ambiental testemunhado por ele, a pesca com explosivos na orla da capital baiana; Caju, um traficante pé-de-chinelo; Richard, um policial; e Keira, uma mulher infeliz no casamento. Essas trajetórias vão se cruzando de maneira cada vez mais incandescente, vão revelando o quanto essas pessoas estão ligadas umas às outras, vão adensando a trama – o que explica o nome da HQ: tungstênio é o metal mais denso da tabela periódica, só é encontrado na natureza combinado com outros elementos (ou seja, é como se esses personagens só existissem em função do outro) e tem o mais alto ponto de ebulição e fusão (tudo a ver não só com o calor da história em si, mas também o da Bahia). Dá para acrescentar que o tungstênio é de aparência branco-acinzentado brilhante, mais ou menos como as páginas em papel couché de Tungstênio.
Mistura de história policial e crônica social, a obra não toma partido de nenhum de seus personagens. Quintanilha concede a eles o melhor de um ser humano, nossa conjugação de falhas e acertos, de sentimentos nobres e desvios de caráter. Para além de sua força dramática, para além de um retrato vívido e fidedigno da periferia soteropolitana (repare na saborosa coloquialidade dos diálogos), o quadrinista exibe virtuosismo técnico: a história é fragmentada, volta no tempo – às vezes para um passado remoto, em outras, para minutos atrás –, e sua "câmera" passeia por toda a extensão de uma cena, ora em alta velocidade, ora em slow-motion. (Aliás, por falar em movimentos cinematográficos, Tungstênio virou filme, ainda sem data de estreia, pelas mãos do diretor pernambucano Heitor Dhalia, o mesmo de Nina, O Cheiro do Ralo e À Deriva.)
Quintanilha aprimorou sua, digamos, fórmula no livro posterior, mas quase que virando-a do avesso. Se em Tungstênio as ações provocam reflexões, em Talco de Vidro são as reflexões que provocam ações. Se em Tungstênio temos um elenco completo com vozes, vontades, vícios e virtudes a vagar pelas ruas e praias de Salvador, em Talco de Vidro a história se passa muito na cabeça de uma personagem, que filtra todos os coadjuvantes por seu olhar enviesado.
A fragilidade emocional é o poder dramatúrgico de Rosângela. Bem-sucedida na profissão (dispõe de um amplo consultório dentário) e no casamento (o marido a ama, dá de presente-surpresa um carro na casa da praia, seus filhos já chegaram à adolescência e estudam em colégio particular), ela vê um fantasma familiar ressurgir em carne, osso e sorriso. É a prima, a prima lá do Barreto, bairro suburbano de Niterói, onde se serve café em copo de requeijão. A prima pobre, mas que desde a infância projeta uma sombra sobre Rosângela. A prima que teve uma vida muito mais feia – "Imagine você casar achando que vai deixar de limpar o vômito do seu pai do chão e acabar limpando o cuspe do seu marido de sua casa" –, o que deixa a sua beleza natural ainda mais insuportável para Rosângela. A prima: a simples menção da parente é a senha para desgovernar a protagonista, em um desmoronamento arquitetado por Quintanilha com esmero e veracidade – nossos caminhos nem sempre obedecem à razão; há forças maiores a nos guiar pelas estradas que tomamos.
Tungstênio e Talco de Vidro são retratos a um só tempo da alma humana e da alma brasileira. Nos dois livros, são perceptíveis as qualificadas influências já declaradas por Quintanilha – como o cinema neorrealista italiano (vide os personagens de classe operária buscando melhores condições de vida em um ambiente fatalista) e os romances de Machado de Assis (eu vi em Rosângela a obsessão de Bentinho em Dom Casmurro). Essa experiência de leitura gerou enorme expectativa para a obra mais recente do quadrinista, Hinário Nacional. E não duvido que, a partir da experiência da criação e da recepção crítica, o autor possa ter feito uma reflexão semelhante àquela que eu fiz no início deste texto: o desafio de produzir uma nova obra do mesmo quilate se tornou intimidador?
Vários elementos permanecem, como a preocupação social, os anti-heróis afligidos por um mal não raro invisível aos olhos dos outros (como uma jovem vítima de abuso sexual, um homem que não consegue aceitar a velhice, uma mulher que sofre calada um relacionamento desigual), a prosa cotidiana, a suspensão e a dilatação do tempo. Mas, em vez de outra narrativa longa, Quintanilha oferece seis histórias, cinco delas bem curtas, em um livro de formato menor do que os anteriores. O que parece um freio na ambição artística revela-se um salto mais ousado.
O quadrinista de Niterói investe em elipses e simbolismos, metáforas visuais e jogos de palavras. A sofisticação merece aplauso – foge-se de soluções mais óbvias e cruas na abordagem de episódios traumáticos, são bem criativas algumas analogias entre o que se vê e o que se conta –, mas há um preço a pagar (seja pelo autor, seja pelo leitor): por vezes, é difícil de compreender as coisas, entender de quem são aquelas falas, apreender o, digamos, sentido da história. Isso, repito, pode ser culpa minha – pode ser apenas que eu não tenha a sensibilidade requerida, ou que eu esteja querendo muita objetividade de uma HQ mais intimista e poética. Mas a sensação que tive é de que, ao comprimir suas narrativas, Quintanilha roubou do leitor um espaço e um tempo importantes para o desfrute de seu estilo e de sua gramática. Não por acaso, consegui me ambientar melhor nos contos mais longos, embora mesmo esses tenham deixado lacunas, dúvidas, perguntas sem resposta. Novamente, pode ser que eu esteja sendo obtuso aqui, pode ser que eu não esteja enxergando a beleza de Hinário Nacional, que, quem sabe, é para ser uma obra mais subjetiva mesmo, aberta a interpretações. Mas, por honestidade intelectual, achei que eu tinha de dizer isso. Afinal, é isso o que os personagens de Quintanilha fazem, não? Eles se desnudam, não escondem suas feridas.