Bianca Pinheiro, carioca de 30 anos radicada em Curitiba, é uma das mais prestigiadas quadrinistas da geração atual. Despontou com Bear (2014), sobre uma menina perdida que se torna amiga de um urso. Assombrou com Dora (2014), a história de uma jovem sociopata pelos olhos de sua mãe. Ganhou popularidade com Mônica: Força (2016), sensível álbum da coleção Graphic MSP, dedicada a oferecer novas leituras (não raro melancólicas, no mínimo mais sérias) para os clássicos personagens de Mauricio de Sousa — no caso, a dentuça encara a separação dos pais. Figurou nas listas de melhores do ano pela crítica com Alho Poró (2017), gibi financiado pelo Catarse e não disponível nas grandes livrarias.
Greg Stella, curitibano nascido em 1986, produziu com Bianca Meu Pai É um Homem da Montanha (2015), terror que ele assinou como Gregório Bert, e é autor do fanzine Nas Dobras do Mundo. A parceria rendeu um novo fruto: Eles Estão por Aí, que a Todavia lançou recentemente (216 páginas, R$ 54,90 em média).
Trata-se de uma dupla aventura: a dos personagens, embrenhados em uma espécie de missão misteriosa, e a dos próprios autores, empenhados em desafiar o gosto médio do leitor de quadrinhos, um público mais afeito a histórias com começo, meio e fim.
É preciso reconhecer a coragem do casal e a sinceridade da editora, que, na contracapa, descreve assim a HQ: "(...) duas criaturas caminham rumo a um lugar desconhecido. Durante essa jornada, encontram certos seres, envolvidos em afazeres e dúvidas. (...) Eles Estão por Aí é um convite para uma viagem insólita, sem rumo definido e nem regras claras".
Desconhecido. Dúvidas. Insólita. Sem rumo definido e nem regras claras.
São palavras-chave, de fato, em relação ao livro, que tem texto de Greg e arte de Bianca, exibindo toda a versatilidade de seu traço: compare o tom sinistro e algo abrupto de Dora, a delicadeza de Mônica: Força e o equilíbrio entre detalhamento e vastidão de Eles Estão por Aí — não parecem obras da mesma desenhista.
Os protagonistas, se é que se pode chamá-los assim, são uma criatura semelhante a uma espiga de milho e outra que lembra uma lesma ou uma ameba. Eles precisam se deslocar a algum lugar que não sabemos qual é, por um motivo que não sabemos qual é. No caminho, no desenrolar desse fiapo de trama, surgem personagens como uma espécie de monstro gigante dedicado a uma tarefa que se mostra inútil, silhuetas minúsculas que dialogam sobre banalidades e futilidades, um insectoide que atravessa uma crise de fé.
Sobre o que, de fato, Greg e Bianca estão falando? Que temas são refletidos nessas 200 e poucas páginas de esmero gráfico? Quem são os "eles" do título, que ameaça representam?
É preciso reconhecer a sinceridade do casal e a coragem da editora — em uma entrevista ao blog da Itiban, Bianca disse o seguinte: “Quando estamos os dois (Greg e eu) trabalhando no mesmo quadrinho, fica muito difícil entendermos onde a narrativa funciona e onde está ruim. Nesse caso do Eles Estão por Aí, fomos obrigados a acreditar na palavra do André (Conti, editor) quando ele dizia que estava bom porque, honestamente, pra gente nada mais fazia sentido”.
Também vou ser sincero: só decodifiquei a HQ quando li a crítica escrita por Thiago Borges no site O Quadro e o Risco. Foi ele quem apontou "o tédio e a frustração gerados pela falta de perspectiva do futuro; as dúvidas causadas pela religião; a tristeza de cortar laços familiares; a ansiedade trazida pelo amor; a brutalidade da violência sem explicação; a imprevisibilidade da morte". Foi ele quem interpretou os personagens como "seres que enfrentam o abismo da vida sem se darem conta da falta de sentido de suas ações. Todos habitam o mesmo mundo, eventualmente esbarram uns nos outros, contudo mal percebem o semelhante".
Mas nem o Thiago Borges, nem eu estaremos junto ao leitor quando ele estiver com Eles Estão por Aí em suas mãos. Ler sem bússola pode se tornar frustrante, para além dos bem-vindos incômodo e provocação. Entendo que essa história em quadrinhos é menos uma narrativa e mais uma experiência (aliás, poderia prescindir dos diálogos herméticos ou apenas vagos de Greg, tamanha a força dos desenhos de Bianca), admiro gibis que exigem de nós bagagem cultural ou emocional, curto obras sujeitas a interpretações variadas e adoro quando textos posteriores fornecem novas chaves de leitura. Mas a HQ parece aberta demais, mais desenvolvida na cabeça dos autores do que nas suas 200 e poucas páginas. Ou a minha cabeça é fechada demais.
Será? Bom, se um dos objetivos do quadrinho é fazer a gente empreender uma espécie de caça do tesouro metafórico, servir como um espelho para medir o quão curto é nosso alcance, nos arrancar da platitude da compreensão para um deserto desprovido de rotas fáceis, se o objetivo é revelar que somos tão pequenos como os personagens que transitam por aquele mundo vazio e infinito, criar identificação e empatia para com as criaturas (também elas estão tateando no escuro, rumando quase por inércia até o final da história) — bem, acho que os “eles” do título são os próprios Greg e Bianca, uma ameaça à mesmice, mas também ao entendimento, um convite à dança dos sentidos: cabe a você escolher seu par, é você quem decide que sentimentos ou indagações o balé arrastado e monocromático evoca.
Há quem goste. Eu prefiro com um pouco mais de luz.