Um policial noir ultracolorido. Uma ficção científica hipster. Um drama existencial carregado de crítica social. Um romance desbragado assinado por um quadrinista conhecido pelo cinismo e pelo pessimismo em relação à humanidade.
Difícil enquadrar Paciência (editora Nemo, tradução de Jim Anotsu, 180 páginas, R$ 64,90) em um só gênero – e isso, em vez de ser um problema, se mostra uma das virtudes da HQ escrita e desenhada pelo americano Daniel Clowes. A viagem no tempo que seu protagonista empreende nos leva a um jardim de sensações: excitação, pelo ritmo vertiginoso da trama; apreensão, quanto ao destino dos personagens; tristeza, diante da falta de perspectivas e um certo fatalismo das gentes costumeiramente retratadas por Clowes (que, como bem apontou um amigo colecionador, remetem um pouco àquelas do filme Drive e da série True Detective: pessoas que vivem na merda e acabam aceitando isso como inevitável); felicidade, ao concluir a leitura de uma obra caprichada, corajosa e, a seu estranho modo, confortadora.
Leia mais:
Por que ler "Meu Amigo Dahmer"
Por que ler "Hellblazer"
Por que ler "Do Inferno"
Por que ler Marcello Quintanilha
A HQ revisita tipos e temas característicos do autor de 56 anos, um dos nomes mais celebrados do quadrinho independente americano, a ponto de ser cobiçado pelo cinema – já foram transformados em filme Ghost World, com Scarlett Johansson e Thora Birch nos papéis principais, e que valeu a Clowes e ao diretor Terry Zwigoff uma indicação ao Oscar de melhor roteiro adaptado em 2002, e Wilson, que estreou em março passado nos Estados Unidos, estrelado por Woody Harrelson. Em Paciência, que também ganhará uma versão cinematográfica, tornamos a ver um protagonista obcecado por um objeto de afeto ou de desejo, enfrentando ameaças e colocando-se em risco por causa disso, ao mesmo tempo em que dão voz ao olhar enviesado de Clowes para a sociedade americana, um mundo onde o bizarro e o belo se fundem, como em um filme surreal de David Lynch, um ambiente hostil e emburrecido – as armas a proteger seus personagens são o desprezo e o sarcasmo.
Paciência é, em mais de um sentido, o que falta ao protagonista, um americano comum chamado Jack Barlow. Atenção para o que talvez seja o único spoiler deste texto, mas é a mínima informação necessária sobre o enredo da HQ (inclusive copiei a frase do material de divulgação da editora): Jack é um homem obstinado em encontrar a pessoa que matou sua esposa, Paciência, quando ela estava grávida. A fim de cumprir sua missão, ele faz o diabo para embarcar (agora eu vou usar o subtítulo do livro, estampado na sua contracapa) em "uma viagem cósmica através do espaço-tempo rumo ao infinito primordial do amor eterno".
Dito assim, Jack pode soar como um herói romântico, só que ele é cheio de defeitos, como todos nós (é como se a coloridíssima paleta usada por Clowes nos lembrasse de que as coisas na vida não são preto ou branco). Mentiroso, autocentrado – o uso de balões com falas cortadas ajudam a dimensionar a obsessão do personagem, surdo ao que os outros dizem –, agressivo, afobado, ele próprio se define como "um saco de bosta patético". Sua idealizada Paciência é isso mesmo: idealizada. Ao longo do seu périplo espaço-temporal, Jack vai conhecer muito mais dela. Sua jornada por um terreno pantanoso – o dos dilemas típicos a histórias de viagem no tempo ("o quanto eu posso interferir? Se eu fizer tal coisa, será que nós vamos nos conhecer?") – é uma jornada de conhecimento e de autoconhecimento. Uma espécie de terapia, talvez uma exposição pública de anseios e angústias do próprio Clowes, trabalhados em silêncio ao longo de uma década – período durante o qual, dizem, ele não mostrou uma única página a ninguém, nem mesmo a sua mulher, Erika, e a seus editores.
Sabendo um pouco dos bastidores, fica evidente que tanto Paciência quanto sua obra anterior, Wilson, foram gestadas por um artista diferente daquele que entregara ao mundo gibis mais frios e desesperançosos, a exemplo de Como uma Luva de Veludo Moldada em Ferro (1993) e Ghost World (1997). Wilson (2010) e Paciência (2016) surgiram depois que o quadrinista precisou lidar com a vida e a morte: em 2005, tornou-se pai (do menino Charlie); no ano seguinte, passou por uma complicada cirurgia no coração. Seus mais recentes protagonistas conservam o olhar cínico, mas também são homens determinados a constituir ou reatar laços familiares: Wilson procura sua ex-mulher, de quem estava afastado havia 14 anos, e descobre que tem uma filha; Jack quer salvar a mulher para ver seu filho nascer. Os três – Wilson, Jack e Clowes – têm agora uma preocupação maior: viajam ao passado em nome do futuro, porque querem deixar uma herança ao mundo.