Um leitor da Zero mandou mensagem ao jornal sobre a nova chefe de polícia do Estado ter-se qualificado como feminista. Saiu dia 25 agora. Disse ele que tudo bem com o fato de ser mulher, mas “não pegou bem a delegada se declarar feminista”. E provocou: “Imaginem se um homem assume um alto cargo e se declara machista. Já pensaram?”.
Na pergunta final se vê que o leitor está falando urbi et orbi: ei, vocês aí, não se deram conta de que não tem cabimento uma mulher se declarar feminista, porque isso seria o mesmo que um homem se declarar machista?
A primeira coisa que me veio à cabeça foi: o mal que faz a visão Gre-Nal do mundo, em que só há duas possibilidades. A segunda coisa foi mais enviesada, apontando para dimensão mais profunda: esse leitor imagina que há uma oposição simples entre machismo e feminismo. Gre-Nal. Nós contra elas, elas contra nós.
Que tristeza.
Não se trata de uma oposição simples e imediata. Verdade que o machismo só foi nomeado e por assim dizer passou a existir na intelecção porque surgiu o feminismo, mas este é o fim da linearidade. Machismo é o nome da opressão masculina sobre as mulheres, como atitude existencial, como modus vivendi (segundo latinório do dia), como herança ancestral. Tem consequências mais e menos horríveis — da opressão cotidiana que tem sido desvelada por milhares de esforços, quase sempre feitos por mulheres, até o feminicídio, que só recebeu este nome por causa do feminismo, este mesmo que identificou o machismo.
O que há no feminismo é o combate à opressão, coisa imprescindível para quem quer viver na paz
LUIS AUGUSTO FISCHER
Já o feminismo é um movimento tectônico, lento e irrefreável, de luta por direitos justamente contra o machismo, que é a opressão. Começa sabe-se lá quando, mas ganha fôlego histórico no ambiente urbano e de mercado, com o florescimento da consciência dessa opressão, coisa de uns três séculos atrás. Considerar machismo como um oposto simétrico do feminismo é o mesmo absurdo que conceber a existência de um racismo reverso, o suposto (e inexistente) movimento de opressão de etnias historicamente oprimidas sobre seus opressores. Mas temo estar aqui – agora é bíblica a imagem – pregando no deserto.
O que há no feminismo é o combate à opressão, coisa imprescindível para quem quer viver na paz — não a imaginária paz do mundo já fenecido (o mundo da escravidão, do machismo, do racismo, do ecocídio inquestionado), mas a paz do reconhecimento da igualdade de direitos para todos.