"A palavra cão não morde": a frase circulou bastante em Porto Alegre 40 anos atrás, por causa de um filme de Sérgio Amon e Roberto Henkin (não me lembrava dos diretores, mas o gúgal tá aí para isso mesmo). A frase ganhou certa vida autônoma, forte mas menor que outra frase que também estava conectada a um filme de poucos anos antes, Deu pra ti, Anos 70. (A concordância ortodoxa pediria um plural ali, "deu pra vocês, anos 70"; mas qual o valor de uma concordância ortodoxa numa frase heterodoxa consagrada?)
O mesmo gúgal me avisa que a frase sobre o cão é de Aristóteles, o que já eleva a conversa a patamares eruditos (como a concordância ali de cima), e eu talvez devesse sair de cena sem comentá-la, porque sobre o sábio de Estagira (eu lembro desse cognome por causa do Caetano Veloso, não por livro) eu sou quase inocente.
A inofensividade da palavra cão me voltou à memória por causa de duas censuras recentes. Uma foi feita semana passada contra o Boca Migotto, cineasta e escritor: convidado para ser patrono da Feira do Livro de sua cidade natal, Carlos Barbosa, foi atacado pelas redes sociais a partir (ele descobriu) da ação de um político de extrema-direita, insatisfeito com a honraria concedida ao Boca, que sabiamente renunciou ao convite ao ver o tumulto idiota em que estava envolvido.
A outra também é da semana passada, agora em Santa Cruz do Sul. Uma professora foi às mesmas redes para acusar o "governo federal" – ela repetia com visível prazer essas palavras – de promover um livro do Jeferson Tenório, O Avesso da Pele, que ela considerou como que pornográfico. Ela leu uma frase isolada, totalmente sem contexto – e contexto em narrativa é mais que metade da coisa –, e desprezou o fato de que o livro é excelente ao tratar, com grande maestria técnica, do racismo.
A professora está errada em muitos níveis. O governo federal não é o responsável pela indicação do livro (se fosse, teria sido a gestão passada a culpada), e pior de tudo, ela imagina que a escola deve evitar que os adolescentes do Ensino Médio, que passam horas por dia consumindo de tudo e mais um pouco nas redes e aprendendo de tudo na vida, sejam expostos ao livro, por causa de dois palavrões.
Daí que me veio a frase aristotélica, contraditada em duas cidades ricas do nosso Estado, que foram mordidas por palavras.