Como todo mundo que mantém a cabeça entre as orelhas, tenho lido quantidades de textos, em jornais, revistas e na grande teia mundial de computadores, para diminuir minha perplexidade em torno do novo governo nacional. (Nada digo do governo estadual, que, pelo contrário, é civilizado: conversa, expõe seus pontos de vista, negocia, exatamente como devem fazer os que acreditam na opinião pública e na democracia, essas duas instituições de valor inegociável.)
À enxurrada de comentários sobre o patético brado da ministra Damares, anunciando a nova era em que meninos vestem azul e as meninas, rosa, sem matizes, acrescento uma hipótese, que me veio agora ao ler o excelente livro de Lúcia Sá intitulado Literaturas da Floresta: Textos Amazônicos e Cultura Latino-Americana (editora da UERJ, 2012), livro que não sei como eu desconhecia solidamente até uma semana atrás, quando Julie Dorrico me falou dele.
O livro é muito mais do que o título sugere: é uma verdadeira revelação sobre os nexos ativos entre a literatura indianista e a literatura (ou a tradição oral narrativa e poética) dos ameríndios. Dividido em quatro seções, cada uma dedicada a uma grande tradição etnológica da Amazônia e das planícies sul-americanas, o livro logrou encontrar uma equação crítica e historiográfica de altíssima valia.
Ao examinar o caso de Macunaíma, de Mário de Andrade, em cotejo com os registros escritos relativos à cosmovisão do índios pemon centradas no personagem Makunaíma (sim, Mário leu esse material), Lúcia Sá demonstra que ali há uma maneira de ver, sentir e expressar o mundo que nada tem a ver com a dualidade bem x mal, tão assentada na tradição ocidental. Pelo contrário, as figuras têm ambivalências, se metamorfoseiam, passam de gentis a cruéis e vice-versa, tudo isso de forma não-linear.
“Matéria vertente”, como disse Riobaldo, esse caboclo genial criado por Guimarães Rosa, matéria que anda e desanda: assim é a vida, na perspectiva ameríndia. Mudança é a regra. Por isso, olhar para essa imensa tradição – que passa pela ampla literatura indianista dos séculos 18, 19 e 20, envolvendo até mesmo o nosso Simões Lopes Neto – através do filtro da polaridade excludente bem x mal, ou azul x rosa, mais atrapalha do que ajuda, e aliás impede de ver o que de fato está acontecendo.
A sinistra ministra Damares será talvez incapaz de aceitar que a vida brasileira é profunda e irremediavelmente marcada por um jeito de ser que nada tem a ver com o modo ocidental, monoteísta, dual, jeito que os ameríndios e os caboclos de todos os quadrantes do país – tanto quanto os brasileiros afrodescendentes – trazem como aporte original para a cultura brasileira. E esse jeito vai sobreviver ao dualismo trivial que ela quer impor.