Damares Alves já assumiu o recém criado Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos gerando polêmica. Na quarta-feira (2), segundo dia do governo Jair Bolsonaro, circulou um vídeo feito após a posse no qual ela afirmava que o Brasil estava entrando em uma nova era, em que "menino veste azul e menina veste rosa".
A declaração gerou críticas, memes e mobilização: muita gente, incluindo famosos, fez questão de vestir a si e aos filhos ao contrário do proposto por Damares. Depois da repercussão negativa, a ministra afirmou que havia apenas usado uma metáfora.
A declaração sobre o azul e o rosa foi apenas mais uma das várias opiniões controversas que Damares externou sobre o tema da orientação sexual, abrangido por sua pasta. Advogada e pastora evangélica, ela chegou ao ministério credenciada por ter sido uma espécie de "mãe" da polêmica envolvendo um suposto "kit gay" que seria distribuído nas escolas brasileiras –foi das primeiras a falar do assunto transformado em arma de campanha por Bolsonaro.
GaúchaZH selecionou algumas declarações da ministra que revelam seu pensamento sobre questões de gênero e pediu que duas especialistas no tema as comentassem: Pâmela Stocker, doutora em Comunicação e Informação pela UFRGS e integrante do Aquenda - Núcleo de Estudos em Comunicação, Gêneros e Interseccionalidades, e Jane Felipe, professora titular da Faculdade de Educação da UFRGS, coordenadora do Grupo de Estudos de Educação Infantil e Infâncias (GEIN) e integrante do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero (GEERGE).
Sexualidade nas escolas
O que disse a ministra
"Vamos deixar as crianças em paz, gente. Vamos deixar a criança ser criança em sala de aula. Quer fazer a discussão? Vamos fazer lá em cima na academia. O menino é o que ele vê. Ele olha para o corpo e está vendo corpo de menino. E a escola está dizendo que não é menino, para esperar e ver o que ele quer ser."
O que diz Pâmela Stocker
"A quais crianças a ministra está se referindo? Será que as crianças que fogem à regra heteronormativa (gays, lésbicas, trans ou que não se enquadram nas expectativas de gênero) são deixadas em paz na escola? Uma pesquisa da Agência Câmara aponta que 73% dos estudantes brasileiros que se identificam como LGBT já sofreram bullying na escola. O Brasil concentra 82% da evasão escolar de travestis e transgêneros, segundo dados da Comissão de Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil. Enquanto essa discussão for deixada de lado e não disseminarmos políticas públicas e ações afirmativas os números de violência e evasão escolar continuarão aumentando. A discussão não se concentra em definir gênero e sexualidade para os estudantes, como insinua a ministra, mas sim em apresentar a diversidade e a diferença e incluir os sujeitos tradicionalmente excluídos."
O que diz Jane Felipe
"A escola NUNCA disse isso! Há aqui uma evidente confusão conceitual entre identidades de gênero e identidades sexuais. A identidade de gênero refere-se às expectativas culturais, sociais e históricas em torno dos corpos masculinos e femininos. Por exemplo, cem anos atrás as mulheres não tinham acesso à educação em nível superior. No Brasil somente no século XIX as mulheres (e mesmo assim nem todas, apenas as da elite) puderam ingressar nas universidades. Mesmo hoje, existem expectativas muito diferentes em torno dos gêneros, dependendo da região (vejam o exemplo de Malala, que reivindicava o direito das meninas ao estudo). Já as identidades sexuais (homo, hetero, bi, assexuais) referem-se às formas de sentir e viver a sexualidade e aos nossos desejos e afetos."
Cores para meninos e meninas
O que disse a ministra
"É uma nova era no Brasil: menino veste azul e menina veste rosa"
O que diz Pâmela Stocker
"Rosa e azul são apenas cores e suas associações com determinados valores de gênero são construções sociais. No início do século passado, por exemplo, o rosa era a cor associada à masculinidade por sua semelhança ao vermelho e ao sangue, passando a ideia de "força", e o azul continha como mensagem a "delicadeza". Foi apenas após a II Guerra Mundial que essa convenção mudou. As cores são aleatórias, e o que está em jogo são as convenções de gênero associadas a elas."
O que diz Jane Felipe
"Nova era, só se for da ignorância. Tal afirmação evidencia um total desconhecimento dos processos históricos, sociais e culturais em torno das cores atribuídas a meninos e meninas. É preciso entender que as convenções sobre os significados de cada cor são completamente arbitrárias e podem variar de cultura para cultura. Até o início do século XX as crianças usavam branco, pois o processo de tingimento era caro. Os tons pastéis, dentre eles as cores rosa e azul, começaram a ser introduzidos um pouco antes da 1ª Guerra Mundial. Cabe ainda lembrar que a cor rosa era usada por meninos e o azul, pelas meninas."
Príncipes e princesas
O que disse a ministra
"Neste governo, menina será princesa e menino será príncipe. Está dado o recado. Ninguém vai nos impedir de chamar nossas meninas de princesas e nossos meninos de príncipes."
O que diz Pâmela Stocker
"Ao que me consta ninguém nunca foi impedida ou impedido de chamar as filhas de princesas e os filhos de príncipes. O tensionamento feito pelo movimento feminista justamente sublinha as características comumente atribuídas às princesas, que em geral tem muito mais valor atribuído a sua beleza e bom comportamento do que sua inteligência, coragem ou iniciativa. A ideia é que as meninas possam ser o que quiserem, sem limitações, inclusive princesas belas, recatadas e do lar. "
O que diz Jane Felipe
"É interessante pensar que a linguagem desempenha uma função importante na constituição dos sujeitos. Na nossa cultura, é comum chamarmos as meninas pelo diminutivo (princesinha, gatinha, bonequinha, etc.), enquanto os meninos são nomeados no aumentativo. Outro ponto interessante aqui é pensar quais são as representações acionadas quando chamamos alguém de princesa ou príncipe. Estamos nos referindo a princesas brancas, magras, de olhos azuis? Ou a nossa nomeação é inclusiva? O importante é exercer a função que nos cabe em relação às crianças: acolher, proteger, amar. "
Educação sexual
O que disse a ministra
"Sim. Sou a favor da educação sexual. Vou conversar com o Ministério da Educação sobre isso. A escola vai ter que ter um papel importante para combater abusos contra crianças. A primeira ideia é capacitar professores para identificar violências contra os alunos. Mas é preciso respeitar as especificidades de cada idade. E a família deve ser ouvida e consultada. Se a família não quiser que o filho aprenda sobre o assunto, vai ser responsabilizada por isso."
O que diz Pâmela Stocker
"A escola já cumpre um papel importante no combate à violência de gênero, independente de a ministra posicionar-se a favor ou contra a educação sexual. Deixar a decisão de aprender ou não sobre qualquer assunto nas mãos da família é ignorar a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Os pais ensinam a seus filhos hábitos, disciplina e valores. Na escola, as crianças aprendem a desenvolver capacidades e obtêm conhecimentos."
O que diz Jane Felipe
"A educação sexual deve exercer um papel importante na escola, pois informar é proteger. Até porque é na escola que as crianças pedem socorro e trazem suas dúvidas, angústias e curiosidades. Para isso é preciso investir na formação inicial e continuada dos docentes. As estatísticas mostram que uma parcela significativa das crianças é abusada dentro da própria casa."
Kit gay
O que disse a ministra
"O Kit Gay existe ou existiu? Sim! O Kit Gay chegou nas escolas? Sim e não. (...) O Kit Gay daquela confusão, de fato, não chegou às escolas, mas outros kits, outros materiais, bem piores, chegaram e chegam todos os dias."
O que diz Pâmela Stocker
"Gostaria de saber a quais materiais e "outros kits" a ministra está se referindo. Cabe lembrar que aquilo que está sendo chamado de "kit gay" refere-se ao material "Escola sem Homofobia", voltado à formação de educadores para tratar questões relacionadas ao gênero e à sexualidade. O material, que foi alvo de críticas de setores conservadores, teve a veiculação suspensa pela presidência e nunca foi distribuído às escolas."
O que diz Jane Felipe
"Não houve distribuição de kit gay nas escolas. Um corpo docente competente está capacitado para eleger os materiais mais adequados a cada faixa etária. Muitas vezes as famílias são influenciadas por um pânico moral e precisam se informar melhor sobre o tema. "
MULHER DENTRO DE CASA
O que disse a ministra
"Me preocupo com a ausência da mulher de casa. Hoje, a mulher tem estado muito fora de casa. Costumo brincar como eu gostaria de estar em casa toda a tarde, numa rede, e meu marido ralando muito, muito, muito para me sustentar e me encher de joias e presentes. Esse seria o padrão ideal da sociedade. Mas não é possível. Temos que ir para o mercado de trabalho."
O que diz Pâmela Stocker
"A ministra e outras mulheres que desejem podem e devem cobiçar determinados padrões de comportamentos e vivências para as suas próprias vidas. O problema está na construção de um estereótipo e de uma escala de valores sobre o ser mulher, que singulariza o feminino e limita as possibilidades de escolha apontando apenas algumas corretas, desejáveis e normais. Qual é a preocupação da ministra com a ausência das mulheres em casa? Há algo que só possa ser feito pelas mulheres e não pelo homens na organização da rotina da casa, na criação dos filhos e outras atividades?"
O que diz Jane Felipe
"Tal afirmação é um desserviço às mulheres (e também aos homens), pois aqui temos uma concepção de que cabe ao sexo masculino sustentar a casa, dentro de um modelo heteronormativo, de dependência econômica e emocional. A mulher tem o direito à realização profissional, à qualificação, a salários dignos e não deve ir ao mercado apenas por uma questão de sobrevivência. A independência financeira (e emocional) são elementos fundamentais para que as mulheres sigam em frente, sem estarem submetidas de alguma forma, as suas parcerias afetivas."
Ideologia de gênero
O que disse a ministra
"A ideologia de gênero é um grande maltrato contra as crianças do Brasil. (...) Estão desconstruindo a identidade biológica".
O que diz Pâmela Stocker
"A expressão "ideologia de gênero" vem carregada por uma série de confusões e desinformação. Pesquisadores e pesquisadoras que se dedicam ao tema entendem justamente o contrário: que gênero não é uma ideologia. Não se trata de "desconstruir a identidade biológica" ou negar as diferenças sexuais e corporais entre homens e mulheres, mas de compreendê-las não como naturais e determinadas, mas como relações sociais e de poder, que produzem hierarquias e desigualdades. Além disso, trata-se também de respeitar as diferenças e enxergar os sujeitos que têm sido apagados das narrativas históricas: gays, lésbicas, trans, intersexuais e bissexuais. Não entendo como isso pode ser interpretado como um maltrato contra as crianças."
O que diz Jane Felipe
"A ignorância é o maior maltrato contra as crianças, jovens e adultos. É preciso entender o que significa a "identidade biológica" e como ela está sujeita às construções históricas, sociais e culturais. Não se trata de negar o corpo biológico, mas é preciso entender como este tem sido ressignificado e interpretado ao longo da história. Antes do século XVIII a teoria unissexual entendia o corpo feminino como um corpo masculino que não deu certo, que atrofiou. O corpo tem uma história. A sexualidade também."