Bastou sentar-se na cadeira de chefe da Polícia Civil do Rio Grande do Sul e tentar cruzar as pernas para cair a ficha de Nadine Tagliari Farias Anflor: em 177 anos, uma mulher jamais havia ocupado aquele lugar. Quando tentou se acomodar na posição de costume, a delegada de 42 anos percebeu que a altura da gaveta não permitiria.
– Já sabia que era a primeira mulher, claro, mas foi surpreendente, porque precisei retirar a gaveta dali para poder sentar de forma confortável. Acho que também é a primeira vez que um secador de cabelo está sendo usado aqui, isso é inédito – brincou Nadine, na produção para a foto que estampa a capa desta edição da Revista Donna.
No gabinete, chamava atenção a quantidade de flores: dois dias depois da posse, realizada em 8 de janeiro, 10 arranjos disputavam espaço. Girassóis e gérberas celebravam o novo momento da carreira da delegada nascida em Getúlio Vargas, na região norte do Estado, que atua na profissão há 15 anos. Acostumada a peitar grandes desafios, Nadine não titubeou ao aceitar o convite do governador Eduardo Leite e do vice Ranolfo Vieira Júnior para assumir o principal posto da Polícia Civil. Mais uma empreitada para quem desde cedo traçou objetivos e se arriscou: ela saiu de casa aos 16 anos para estudar em Passo Fundo, onde concluiu o Ensino Médio, cursou Direito e mergulhou nos estudos decidida a conquistar uma vaga no serviço público.
– Minha saída de casa foi muito marcante, me ajudou a amadurecer, encarar a responsabilidade. Mas, agora, é um desafio gigante – afirma. – Quando recebi o convite, pensei se realmente estava preparada. Vou fazer 15 anos de carreira, fiquei meio apreensiva. Mas daí entrou a Nadine prática em ação, a delegada: "Vamos lá, o que eu tenho que fazer? Missão dada é missão cumprida".
Nadine entrou na Polícia Civil em 2004, integrando uma turma que fugia ao padrão – era composta pelo mesmo número de homens e mulheres. A delegada lembra do baque nas primeiras semanas como titular da Delegacia de Santo Antônio da Patrulha:
– Meu primeiro local de crime foi um suicídio, já no meu segundo dia. Estava de salto alto, coloquei a arma na cintura e fui. Era no meio do mato, em uma lomba, puro barro. Um policial estava comigo e me perguntou o que a gente ia fazer, e eu disse: "Meter o pé no barro". A maior característica do delegado de polícia é a garra, a decisão na hora. Tu tens que decidir e coordenar.
Em 2005, foi convidada para atender Alvorada, Gravataí, Viamão e Cachoeirinha no plantão da Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento (DPPA) da região. Foi na DPPA que a delegada deparou com uma grande quantidade de casos graves por noite e onde, segundo ela, "se formou a policial Nadine":
– Era um ano com índices de criminalidade muito altos, um homicídio por noite. Digo que quem trabalha no balcão de uma delegacia e num plantão policial resolve e pode trabalhar em qualquer lugar. É 24 horas, é tudo contigo.
Um ano depois, a Lei Maria da Penha entraria em vigor, e Nadine se ofereceu para ir às reuniões comunitárias explicar do que se tratava a nova legislação de combate à violência contra a mulher. O envolvimento com as questões de gênero e o trabalho na DPPA resultaram no convite para assumir a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher de Porto Alegre, posto que ocupou por quase sete anos. Na sequência, foi nomeada a primeira coordenadora das delegacias para esse público no Estado – hoje, há 22 postos em operação. A experiência moldou mais uma faceta de Nadine: a da mulher feminista.
– Tenho que ser sincera: não tinha noção do que era a Delegacia da Mulher de fato. São 40 mulheres por dia para atender, mais de mil ocorrências por mês. Diferentemente de outras delegacias, não tem o "estamos investigando". A gente tem a autoria conhecida de 90% dos delitos. Tu tens que trabalhar, atender, chamar – afirma a delegada. – Ali nasceu a Nadine feminista, a Nadine humana, a Nadine da empatia. Eu não era feminista, sempre exigi direitos iguais, igualdade, mas não sabia que isso era ser feminista. Vi na Delegacia da Mulher que existia uma violência silenciosa.
Mais de um caso de violência contra a mulher mexeu pessoalmente com Nadine. Antes da Lei Maria da Penha, a delegada diz que era comum o agressor chegar, assinar um termo circunstanciado e ir embora. A vítima ficava na delegacia machucada, procurando uma casa de abrigo, sem poder pegar seus pertences, completamente desprotegida.
– Quando veio a Lei Maria da Penha fui uma entusiasta. Agora, precisamos fazê-la sair do papel, a rede tem que funcionar. Ainda não temos uma rede estruturada de atendimento e existe o sentimento entre os homens de posse e propriedade, que é o que gera o feminicídio – diz Nadine. – Vamos reduzir os índices falando sobre esse tipo de violência. Falar sobre a violência doméstica é fundamental, é um trabalho que começa em casa, passa pela imprensa também. Precisamos falar com crianças, com a nova geração. Dei palestras grávida sobre a Lei Maria da Penha e sempre dizia que, como mãe de menino, minha responsabilidade era criar um filho que não se ache mais ou melhor do que alguma menina por ser homem.
Nadine diz jamais ter sofrido diretamente com o machismo na carreira policial, mesmo os homens sendo ainda a maioria – a Polícia Civil conta com 38% de mulheres em seu quadro, número que cresce a cada ano. A delegada sempre trabalhou com subordinados homens – inclusive escolheu o delegado Fábio Motta Lopes para ser seu braço direito como subchefe. E foi a primeira presidente à frente da Associação dos Delegados de Polícia do Rio Grande do Sul, onde aprendeu a lidar com colegas de várias gerações e a exercer o papel de elo entre os diferentes. O machismo na vida de Nadine resume-se a olhares tortos de alguns homens da comunidade para a tal "delegada mulher":
– Sempre me coloquei ao lado e em pé de igualdade com os meus colegas. Sempre fui firme, dizia o que pensava. Lembro que, uma vez, estava atendendo um senhor no plantão. Daí ele me agradeceu e disse que queria conversar com o delegado de polícia. Disse que era eu, mas ele questionou se já existia delegada mulher. Precisei levá-lo para o meu gabinete para provar que eu era a delegada de fato. Ele ficou todo sem jeito, me pediu desculpa. Isso aconteceu em 2005, não faz tanto tempo. Penso nas minhas colegas que me antecederam, as primeiras delegadas, no fim dos anos 1980, o que passaram na pele.
O corpo de diretores das 12 repartições da Polícia Civil, escolhido por Nadine e Fábio, é composto metade por mulheres e metade por homens. A delegada confessa que queria, sim, mulheres na diretoria, mas o equilíbrio não foi proposital. O subchefe confirma e aproveita para celebrar a nomeação de Nadine para o cargo:
– Na escolha dos departamentos, focamos na competência e escolhemos juntos. Já trabalhei com a Nadine anteriormente e fico feliz por, pela primeira vez, uma mulher estar assumindo esse cargo em uma instituição centenária. Mas não é por sua condição de mulher, ela é extremamente qualificada e competente. É uma unanimidade dentro da Polícia Civil.
Descrita por colegas como uma gestora focada, workaholic e preocupada com o bem-estar de quem está ao seu lado, Nadine levantou a bandeira da empatia. Em sua gestão, uma das prioridades será o funcionamento do Departamento Estadual de Proteção a Grupos Vulneráveis (DPGV), que vai abarcar a Delegacia da Mulher, do Idoso, da Criança e do Adolescente e os casos contra a população LGBTQ – a previsão é de que uma delegacia especializada de combate à intolerância seja aberta no próximo semestre. A ideia é investir em uma polícia humanizada e integrada a outras instituições, com o objetivo de estabelecer uma rede eficiente de atendimento.
– Queremos reproduzir um modelo do Deca, que é integrado, tem Ministério Público lá dentro, há outros órgãos atuando em conjunto. Senão for um sistema em conjunto, não vai funcionar, tem que ser tudo integrado. Hoje, por exemplo, pensando na mulher, tu não tens um plantão com delegados 24 horas, em função da falta de pessoal. Então, o flagrante que chega no plantão, da mulher que é vítima, concorre com outros flagrantes, de tráfico, roubo. Entra na fila, aí complica. A mulher chega para reconhecer o agressor e é mais um caso apenas. Queremos um projeto-piloto em Porto Alegre, um local especializado. O balcão vai ser um só, integrado, mas os olhares diferenciados, de acordo com a necessidade da vítima.
Nadine pontua que seus esforços como chefe de polícia não se resumem aos grupos vulneráveis. Seu foco também passará por outras questões fundamentais, como a elucidação de crimes de homicídio, o combate ao tráfico de drogas, a repressão aos líderes de facções criminosas e os crimes contra o patrimônio com arma de fogo:
– São coisas que incomodam as pessoas no dia a dia, esse será meu foco. Também quero ter um olhar diferenciado sobre os crimes contra a administração pública, que é algo em que a Polícia Civil precisa evoluir nas investigações. Qualquer desvio de dinheiro público faz faltar lá na ponta, gera insegurança e criminalidade e volta o cliente para nós.
Fora do trabalho, Nadine também já estipulou suas prioridades para 2019. Com a agenda cada vez mais apertada, a lista ficou curta, resumindo-se basicamente a um item: aproveitar com qualidade o tempo escasso ao lado do marido, o funcionário público Elmo Anflor Júnior, 43 anos, e do filho, Carlos Eduardo, oito. Desde o início de janeiro, a rotina de Nadine virou do avesso. Dorme cada vez menos, os compromissos se multiplicam e a viagem de férias precisou ser adiada.
– Estou acordando perto das 6h da manhã e dormindo depois da 1h. Acho que esse ano vai ser assim, sono curto, pois preciso acordar cedo para me atualizar. E, o pior: meu marido dorme com o rádio ligado, daí já ouço os crimes, meu ouvido é seletivo – conta a delegada.
Em 2013, em entrevista à Revista Donna, Nadine afirmou que madrugava para reservar um tempo diário para a família, o sagrado momento do chimarrão – um dos programas favoritos do trio ainda é sentar no jardim do prédio, papear e matear. Hoje, admite que nem isso está rolando:
– O marido está quase pedindo o telefone da secretária pra marcar hora (risos). Mas a família assumiu um compromisso como um todo. Tenho um companheiro que realmente é um parceiro. Se não fosse ele, não assumiria com a tranquilidade que assumo hoje. Falei com os dois, ele e meu filho, que tínhamos um desafio enorme. Mas sabia que eles estariam do meu lado.
Nadine diz que é delegada 24 horas por dia, sem pausa. Controladora, cobra regras em casa e no trabalho. O marido confirma:
– Ela é workaholic. Estamos na praia, e Nadine está no telefone, tem reunião, não para. Torcemos para que possa ajudar de fato na diminuição da criminalidade. Ela tem um perfil que se encaixou nesse momento, é agregadora, empática. Fizemos um planejamento familiar para isso, porque esse ano será diferente, não tem jeito. Vamos contar com a ajuda da família para ser um auxílio ao nosso filho, uma rede de apoio. Somos parceiros.
Na casa dos Anflor, as viagens estão entre as paixões. Idas aos jogos do Grêmio são frequentes – Elmo é conselheiro do clube –, assim como a presença em shows, um dos programas favoritos do casal. O espetáculo de sua vida, conta Nadine, foi o do Coldplay, na Arena, no ano passado.
– Gostamos muito de encontrar com os amigos, seja nos shows ou em encontros em casa só para comer alguma coisa. Já a viagem da minha vida considero que é sempre a última. Fizemos Itália e França recentemente e sempre levamos o Carlos Eduardo junto. O olhar da viagem faz a gente pensar que somos um grãozinho de areia, um olhar de que o mundo é muito maior do que nosso umbigo.
Diante da responsabilidade que tem pela frente em 2019, Nadine sabe que as críticas provavelmente virão. Mas o estresse e agenda lotada que vêm com um posto de comando tão elevado valem a pena, ela sabe:
– Penso muito nas minhas colegas que me antecederam e nas que virão. Alguém tinha que romper esse ciclo, quebrar esse paradigma, isso precisa ser normal. Nós, mulheres, podemos estar em qualquer lugar, onde quisermos.