Quem admira o trabalho de David Lynch costuma se embasbacar e ainda se surpreender com a energia criativa do cineasta americano. De volta à ativa com a terceira temporada da série Twin Peaks, após 10 anos afastado do set de uma grande produção, Lynch marcou sua aclamada trajetória afinando o diálogo – embaralhando pode ser o termo mais apropriado – entre o cinema e as artes visuais. Trata-se de um esteta que ergue narrativas perseguindo na colagem de imagem e som a experimentação e a provocação, talento impresso em filmes referenciais como Veludo Azul (1986), Coração Selvagem (1990), a obra-prima Cidade dos Sonhos (2001) e em Twin Peaks, marco revolucionário na TV nos anos 1990 e agora outra vez despertando reações inflamadas – de desbunde e, em menor grau, impaciente exasperação. Diante de um trabalho seu, a reação nunca é de indiferença.
E foi com a proposta de apresentar o processo de formação desse que é um dos mais reverenciados autores contemporâneos que três documentaristas foram a campo. Jon Nguyen, Rick Barnes e Olivia Neergaard-Holm apresentam em David Lynch: A Vida de um Artista, que estreia em Porto Alegre nesta quinta-feira, um perfil do homenageado no qual ele próprio é o narrador. É como um capítulo anterior ao documentário Lynch (2007), nos qual acompanharam o diretor nos bastidores das filmagens daquele que é, até aqui, seu último longa-metragem, Império dos Sonhos (2006).
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No ateliê de sua casa, nas colinas de Los Angeles, Lynch, como se estivesse num estúdio de rádio, refaz seus passos antes da fama ilustrando o depoimento com imagens de arquivos de sua família – os encontros com o trio de diretores, negociados desde 2006, ocorreram entre 2012 e 2015. E é interessante observar que o ambiente familiar em que Lynch foi criado, reforça ele, mostra-se como um oásis de normalidade, harmonia e felicidade – e nesse contraste entre a idílica vida suburbana congelada no tempo e o universo violento distorcido por medos reais e imaginários o cineasta moldou sua obra.
Mais ou menos sobre isso, diz Lynch no documentário: "Acho que toda vez que você faz alguma coisa, como uma pintura, você vai com as idéias, e às vezes o passado pode conspirar com essas idéias e colori-las. Mesmo que sejam novas idéias, o passado as colore".
Mais velho de três irmãos, nascido em 1946, em Missoula, Estado de Montana, Lynch foi desde a infância estimulado pela mãe a expressar sua criatividade em desenhos e pinturas que não tivessem nenhuma outra referência além da sua imaginação. O menino vislumbrou no mundo o onírico de sonhos e fantasias, matizado por ele em tons mais sombrios, o caminho da expressão gráfica que lhe interessava trilhar.
Na busca por descobrir e depurar um estilo único, Lynch absorveu influências da arte naïf, do dadaísmo e do surrealismo, aproximando-se da obra de artistas como Francis Bacon e René Magritte. Jovem adulto e já vivendo em Boston com a mulher e uma filha pequena, Lynch encarou o impasse de insistir em ganhar a vida como artista gráfico ou seguir o exemplo do pai e do irmão, que encontraram a estabilidade financeira na prosperidade econômica dos Estados Unidos da geração baby boomer.
Em meio ao ingresso na escola de belas artes, a tentativa frustrada de viver na Europa e com o dinheiro contado vindo dos bicos que fazia com amigos artistas, Lynch incorporou a câmera de cinema em seus experimentos estéticos. Com seus inventivos curtas-metragens domésticos, chamou a atenção no circuito underground e ganhou uma bolsa do American Film Institute para estudar cinema em Los Angeles.
Lynch conta essa sua história de formação até começar a dar forma a seu primeiro longa-metragem, o cultuado Eraserhed (1977). Com orçamento irrisório, esse fantástico e assustador filme experimental foi realizado ao longo de cinco anos, sobre um fiapo de roteiro, num processo artesanal de recortar e colar elementos aparentemente dissonantes que só fazem sentido na cabeça de seu criador, com impacto sensorial desconcertante no espectador.
Dentro de seu estúdio, na companhia de Lula, sua filhinha caçula, mostra o documentário, Lynch segue imerso nos seus trabalhos de pintura – vez que outra, dedica-se também à música. Compreende-se nesse filme as razões de seu afastamento de uma indústria audiovisual e de um público cada vez menos dispostos a estimular áreas do cérebro que não as já amortecidas pela falta dessa energia criativa que transborda em Lynch.
Em cartaz em Porto Alegre no Espaço Itaú 4 (21h30) e no Guion Center 2 (14h, 19h1