Para o fã de Alan Moore, todos os anos deveriam ser dedicados à adoração do Mago Barbudo de Northampton, na Inglaterra. Mas este 2019 está superando expectativas, pelo menos para o público brasileiro.
Entre março e abril, chegaram às bancas, livrarias e lojas virtuais cinco gibis do consagrado roteirista de Watchmen, V de Vingança, Do Inferno, Batman: A Piada Mortal, Superman: O que Aconteceu ao Homem de Aço?, Miracleman, Promethea… (a lista de obras memoráveis é extensa). E mais quatro estão prometidos até o final do ano.
As primeiras aventuras da Liga Extraordinária
O lançamento mais luxuoso é a republicação pela Devir, em um portentoso volume único (528 páginas, R$ 230), das duas primeiras aventuras protagonizadas pela Liga Extraordinária, o grupo de "super-heróis da literatura" arregimentado por Moore em clássicos dos séculos 19 e 20. Para quem chegou agora (a série surgiu na virada do milênio), 1898 é uma ótima oportunidade de começar a acompanhar as peripécias de Mina Murray (personagem surgida no Drácula, de Bram Stoker), Allan Quatermain (criado por Henry Rider Haggard em As Minas do Rei Salomão), Capitão Nemo (de As 20.000 Léguas Submarinas, de Jules Verne), Dr. Jekyll e Mr. Hyde (de O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson), Hawley Griffin (O Homem Invisível, de H. G. Wells), John Carter (bolado por Edgar Rice Burroughs para Sob as Luas de Marte) e Orlando (da obra homônima de Virginia Woolf), entre tantos outros nomes antológicos da ficção britânica.
Com arte de Kevin O'Neill e cores de Benedict Dimagmaliw, a Liga Extraordinária transformou-se em uma franquia longeva (além de ter sido adaptada para o cinema, em 2003, em um filme que, apesar de contar com Sean Connery no elenco, todos preferem esquecer – até o ator escocês). Depois dessas duas primeiras minisséries, vieram os livros 1910, 1969 e 2009, posteriormente reunidos no encadernado Século Integral, e Dossiê Negro (ambos também editados no Brasil pela Devir). A saga derivou o que os americanos chamam de spin-off, a trilogia Nemo, estrelada por Janni Dakkar, a filha do Capitão Nemo e sua sucessora no comando do submarino Nautilus (esta, uma criação de Moore e O'Neill): Coração de Gelo, Rosas de Berlim e Rio de Espíritos. Este último está sendo lançado pela Devir (64 páginas, R$ 58) e tem como cenário a Amazônia de 1975, onde uma agora octogenária Janni lida com sombras de seu passado (ou de sua imaginação?), mitos como o da cidade de Yu-Atlanchi (criada por Abraham Grace Merritt em The Face in the Abyss) e lendas como a da ascensão de um novo Reich nazista na América do Sul.
Se você prestou atenção, percebeu que o preço de A Liga Extraordinária: 1898 ultrapassa os R$ 200. Por que um gibi custa tão caro? Longa história, com múltiplos fatores (desde os custos com direitos de publicação à predileção de parte do público consumidor pela suntuosidade de edições com capa dura, lombada vistosa e papel cuchê). Mas, no caso desse catatau, deve-se dizer que há recompensas extras à fruição de uma história que se parece com um parque de diversões literário. Aliás, entre elas, para além dos textos adicionais e dos cartões-postais, fulgura a sobrecapa que se transforma em um jogo de tabuleiro, para o qual as peças são versões recortáveis dos principais personagens.
Do Monstro do Pântano ao King Kong
A Panini também vem se dedicando à obra do escritor que completou 65 anos em novembro passado. Na virada de 2018 para 2019, publicou o terceiro e último volume de Providence, homenagem de Moore a um de seus escritores favoritos, H. P. Lovecraft (1890-1937).
Entre março e abril, estão saindo mais três HQs, incluindo a reimpressão de Watchmen (480 páginas, R$ 110), obra de Moore com o artista Dave Gibbons que desde sua estreia, em 1986, passou a ser perpetuamente aclamada por fãs e críticos.
O volume 6 da nova edição de A Saga do Monstro do Pântano (208 páginas, R$ 30,90) conclui a brilhante passagem de Moore pelo personagem, uma fase que durou de 1983 a 1987 e que ditou rumos ao mesclar horror gótico, filosofia, crítica social, política, super-heróis e ecologia. Aqui, neste grand finale, a criatura que um dia foi o cientista Alec Holland encerra sua jornada pelo espaço sideral e retorna para o seu amado bayou e para os braços de sua amada Abby Cable.
O terceiro gibi publicado pela Panini é o segundo volume de Cinema Purgatório (152 páginas, R$ 46). Trata-se de uma coletânea recente com histórias curtas de terror e ficção científica, da qual participam também, entre outros roteiristas e artistas, Garth Ennis, Kieron Gillen e o brasileiro Gabriel Andrade. O que vale são os contos de Moore ilustrados por Kevin O'Neill. Todos se passam dentro de um filme que é exibido em uma mesma sala de cinema, mas cada filme é bem diferente do outro.
No primeiro volume, a dupla parodiou os filmes policiais dos anos 1910, promoveu uma discussão filosófica-metalinguística em uma produção dos anos 1950 sobre a Roma Antiga e desconstruiu as cinesséries super-heroicas dos anos 1940. No novo livro, o King Kong das primeiras décadas de Hollywood protagoniza a história de abertura. Depois, um casal à la Cary Grant e Katharine Hepburn enfrenta a passagem do tempo na genial Os Melhores Anos de Nossas Vidas. Por fim, surge uma comédia um tanto hermética para quem não é familiarizado com os Irmãos Marx. De modo geral, todos os contos surpreendem, assustam e nos levam a viajar e a buscar ressonâncias – tanto na história da arte e do entretenimento quanto na própria vida.
Histórias raras e "Lost Girls"
O "festival Alan Moore no Brasil" não para por aí. Ainda no primeiro semestre, sem preço definido, a editora Mythos deve lançar a inédita Brighter Than You Think. É uma compilação, publicada originalmente em 2016, de 10 histórias curtas e raras assinadas por Moore em colaboração com um time de artistas. Entre eles, estão Don Simpson (que ilustra In Pictopia, considerada por alguns críticos uma pequena obra-prima), Stephen Bissette, John Totleben, Rick Veitch (três de seus parceiros em A Saga do Monstro do Pântano) e Peter Bagge, além de Melinda Gebbie, esposa do roteirista e sua parceira na criação dos três volumes de Lost Girls (1991, 1992 e 2006) – que, no segundo semestre, ganhará reedição em um único livro, também pela Mythos.
A exemplo de Liga Extraordinária, Lost Girls é Alan Moore reinventando personagens literárias. O roteirista promove o encontro em um hotel austríaco, entre 1913 e 1914, da protagonista de Alice no País das Maravilhas (1865) e Alice Através do Espelho (1871), de Lewis Carroll, da Wendy de Peter Pan (1904), de J. M. Barrie, e da Dorothy de O Mágico de Oz (1900), de Frank L. Baum.
Moore debruça-se sobre o subtexto e a voltagem erótica dessas histórias que, apesar de comumente associadas ao público infantil, são reconhecidas pela abordagem, por meio de metáforas e simbolismos, de temas como chegada à puberdade, iniciação sexual e repressão dos desejos. Não à toa, os traços leves e as cores escolhidas por Melinda criam uma atmosfera onírica: sonhos revelam nosso inconsciente. No hotel Himmelgarten, protegidas dos "ventos gelados que sopram lá fora" (uma referência tanto à Primeira Guerra Mundial como ao conservadorismo), Alice, Wendy e Dorothy encenam uma espécie de As Mil e Uma Noites ocidental. Embarcam em uma jornada assumidamente pornográfica, sem freio moral – as cenas incluem sodomia, incesto, sexo com crianças e masturbação de um cavalo.
Uma rara comédia e a obra de despedida
No segundo semestre, a Devir volta à carga com duas obras inéditas. The Bojeffries Saga (1983-1991) é uma rara comédia na carreira de Moore. Ilustrada por Steve Parkhouse, gira em torno de uma família excêntrica que é alvo das tentativas de cobrança de aluguel: há um lobisomem que come poodles, um vampiro vegetariano e uma filha retratada como obesa e repulsiva.
O outro lançamento ainda não tem título nacional confirmado. Será a última aventura da Liga Extraordinária, também anunciada como a despedida de Alan Moore dos quadrinhos, para se concentrar em seu papel de romancista caudaloso (Jerusalém, por exemplo, do qual a Companhia das Letras comprou os direitos de publicação no Brasil, tem mais de mil páginas!). Não por acaso, no original a HQ se chama The Tempest, A Tempestade. Com sua pretensão característica – e adorável na opinião dos fãs –, o Mago Barbudo batizou seu declarado último gibi com o mesmo nome da última peça de Shakespeare.