
Já desembarcou no Brasil uma obra que conseguiu a rara proeza de ser aclamada em um lado e no outro do Oceano Atlântico. Nos Estados Unidos, seu país de origem, Minha Coisa Favorita É Monstro (Companhia das Letras, 416 páginas, R$ 134,90) figurou nas listas dos melhores quadrinhos de 2017 elaboradas por publicações como o jornal The New York Times e o site Comic Book Resources (CBR). Em 2018, foi premiada em três categorias do Eisner, o Oscar dos gibis americanos: melhor álbum, melhor roteirista/desenhista e melhor colorista. Também foi efusivamente saudado por grandes autores, como Art Spiegelman, de Maus, Chris Ware, de Jimmy Corrigan, e Alison Bechdel, de Fun Home. Na Europa, o livro ganhou no ano passado o troféu Gran Guinigi de melhor graphic novel, concedido pelo Festival de Lucca, na Itália, o maior do continente, e, em janeiro, recebeu o Fauve d'Or, o principal prêmio do tradicional Festival de Angoulême, na França.
A façanha torna-se mais vultosa quando conhecemos alguns números ligados à biografia de sua autora. Emil Ferris, 57 anos, levou cinco anos para concluir as 416 páginas desta que é sua primeira história em quadrinhos. Demorava dois dias para terminar uma única página, trabalhando 12 horas diárias – produzir Minha Coisa Favorita É Monstro funcionou como reabilitação depois de a artista ter contraído a febre do Nilo Ocidental, doença que paralisou, temporariamente, suas pernas e a mão direita. Ela precisou aprender a desenhar com a esquerda e gastou cerca de 20 mil canetas esferográficas ou hidrocor no livro, que mimetiza um caderno escolar. Tamanho esforço custou a ser recompensado: a HQ foi recusada por 48 editoras até que a Fantagraphics topasse a empreitada.
— Acho que o livro era um monstro muito difícil, uma espécie de Frankenstein, grande e um tanto indefinível. Sendo assim, amedrontava as pessoas — admite Emil em entrevista por e-mail (leia mais logo abaixo).

De fato, o escopo e a magnitude de Minha Coisa Favorita É Monstro em seu Livro Um (serão dois volumes) são tão grandes, que não cabem em uma simples definição. A obra é protagonizada e narrada por Karen Reyes, uma guria de 10 anos inspirada na infância da própria Emil Ferris, que decide investigar o assassinato de uma vizinha tão bela quanto misteriosa, Anka, uma judia sobrevivente da Segunda Guerra Mundial. Através do caderno de desenhos de Karen, a autora mistura o drama psicológico de uma menina que começa a lidar com sua sexualidade; a efervescência política e social dos EUA do final dos anos 1960; a cultura pop dos gibis e filmes de terror; um passeio pela história da arte; as memórias do Holocausto e retratos dos monstros da vida real – sejam eles nazistas, racistas, exploradores de mulheres, fanáticos religiosos ou preconceituosos em geral.
"Ser mulher é uma das encarnações mais perigosas pelas quais a alma humana pode se aventurar"
Por e-mail, Emil Ferris concedeu a GaúchaZH a seguinte entrevista (que contou com a colaboração de Vicente Nogueira na tradução):

Por que monstros? O que há de fascinante neles e o que dizem sobre nós?
Acredito que somos fascinados porque nós somos monstros. Penso que nosso medo "deles" indica que tememos encarar a nós mesmos. Tenho profunda simpatia em relação a esse medo e com os amedrontados, porque eu não sou menos assustada e menos imperfeita.
Existem monstros bons e ruins, como a menina Karen Reyes, narradora de Minha Coisa Favorita É Monstro, diz? O que os diferencia?
Se todos somos monstros, então o problema real é não estar ciente disso e deixar de possuir a humildade que esse discernimento lhe dota. Monstros ruins são os mais verdadeira e profundamente amedrontados. Monstros ruins não possuem o apreço e a humildade de abraçar sua "alteridade". O único modo de encontrar sua singularidade é aceitá-la como um todo. Devemos aceitar e encarar as imperfeições para que enxerguemos a beleza e originalidade em nós mesmos. A maior batalha entre a luz e as trevas é dentro de si.
Devemos aceitar e encarar as imperfeições para que enxerguemos a beleza e originalidade em nós mesmos. A maior batalha entre a luz e as trevas é dentro de si.
Em um vídeo no YouTube, você diz, mais ou menos assim, que nada do que aparece no livro aconteceu, mas é tudo verdade (ou vice-versa). O quanto de Minha Coisa Favorita É Monstro tem tintas autobiográficas?
Muitas coisas no livro são baseadas na minha vida e na minha experiência, embora os nomes e os relacionamentos tenham sido mudados para proteger os inocentes e os culpados. Eu era uma criança com antepassados de etnias diferentes na parte alta de Chicago que ADORAVA monstros, me apaixonava pelas minhas amigas e tinha tutores que eram muito supersticiosos (em um caso) e adoravam arte e museus (em outros casos). Assim como Karen, vi a violência da época refletida do gênero de terror. Já cedo, minha exposição aos sobreviventes do Holocausto, da escravização/genocídio dos afro-americanos por 400 anos, das desapropriações e genocídios de povos ameríndios alargou minha consciência de toda a beleza que os monstros ruins destroem quando sua ganância vã não enfrenta oposição.
Como surgiu a ideia de fazer o livro usando canetas esferográficas, como Bic e Flair, e reproduzindo páginas de um caderno?
Este livro foi baseado nos meus próprios cadernos. Quando eu era pequena, minha família era bastante pobre, portanto, tudo o que eu tinha, primeiramente, eram canetas Bic e meu caderno escolar.

Escrevi este livro para o tipo de criança que eu fui. Escrevi este livro para todos aqueles que são solitários e que não se sentem aceitos como são.
Em um primeiro momento, achei que Karen se retratava e se via como monstro apenas por estar naquela fase de transição entre a infância e a adolescência. Mas, depois, entendi a caracterização da personagem como uma espécie de espelho de sua inadequação ou mesmo de sua culpa: criada em uma família católica com um certo apego à religião, Karen se sente culpada pela própria sexualidade?
Sim, Karen sente-se culpada. Ela ouve o mantra da religião da mãe, de seus professores, de seus vizinhos, inclusive as palavras de sua querida e amada mãe, que quem ela é, uma pessoa que potencialmente pode amar gente do seu próprio gênero, não é "certa", não é digna de aceitação e amor. Ela não vê, onde quer que olhe, representações de mulheres poderosas e magníficas que amam uma a outra. Até mesmo o seu irmão caracteriza de modo negativo qualquer uma que se identifique como lésbica, então Karen se vê em uma espécie de inferno. Desse modo, ela está aflita e desamparada. Escrevi este livro para o tipo de criança que eu fui. Escrevi este livro para todos aqueles que são solitários e que não se sentem aceitos como são.
Você passou por alguns dramas pessoais. Nasceu com um tipo de escoliose que só permitiu que começasse a caminhar com mais de dois anos de idade; mais tarde, aos 40 anos, foi picada por um mosquito e contraiu a Febre do Nilo Ocidental, que paralisou os movimentos de suas pernas e de sua mão direita. Em cadeira de rodas, teve de cuidar da filha de seis anos e precisou aprender a desenhar com a mão esquerda. De que maneira essas duas situações influenciaram e influenciam seu trabalho artístico?
Por grande parte da minha vida, minha arte era tudo o que eu tinha. Sobrevivi a dificuldades físicas porque eu era capaz de entender o mundo vendo e criando arte. A arte sempre me salvou.
Seu livro é como um caldeirão em que se misturam o drama psicológico de uma menina que precisa lidar com sua sexualidade, o turbulento contexto político e social do final da década de 1960, a investigação de um assassinato, as memórias do Holocausto, a cultura pop dos gibis e filmes de terror e a História da Arte. Como você fez para cozinhar de uma forma que fosse palatável? Você teve a preocupação de harmonizar os ingredientes? Seguiu uma receita ou foi jogando tudo à medida que a imaginação mandava?
Obrigada! Essa é uma grande metáfora. Imagino que a receita que você mencionou requer que eu periodicamente prove o ensopado. Se eu gosto, pessoalmente, eu sirvo à mesa. No processo de cozimento, eu me apego a certos ingredientes. Eles são as coisas que me aturdem, aos mistérios e às visões que acho deliciosos.

A propósito, pode falar um pouco sobre a criação e a pesquisa para a personagem Anka, uma judia sobrevivente da Segunda Guerra Mundial com um passado misterioso?
Anka surgiu da experiência de ter visto uma série de números azulados sob a manga de uma pessoa bela e cheia de cultura que conheci. Me lembrei de como ela puxava para baixo quela manga de seda. Me fascinou. Descobri o que eu havia visto e o que significava. Realmente acredito que atraímos para nós os mentores dos quais precisamos. Ao longos dos anos que se seguiram, foi o que aconteceu comigo. As pessoas me contaram suas histórias e livros caíram em minhas mãos.
Em um sonho, Karen vê Anka em um cemitério no qual aparece a inscrição "MacGuffin". Esse é o nome que se dá, na ficção, a um dispositivo do enredo, na forma de algum objetivo ou objeto que o protagonista persegue, mas que geralmente é desimportante para a trama em si. Esse foi um recado para a própria Karen ou para os leitores?
Fico feliz que você tenha percebido essa! Sim. O MacGuffin é um bom ícone para dizer que a jornada é muito mais importante do que a chegada ao destino. Aquilo me pareceu verdadeiro quando criava este livro.

Um dos hobbies de Karen é desenhar e analisar as capas das revistas de horror. Em um desses momentos, ela faz a seguinte observação acerca de alguns estereótipos do gênero: "Ter peitos é muito perigoso". Para você, ser mulher é perigoso? Como você vê o tratamento dispensado pela sociedade às mulheres?
Ser mulher é uma das encarnações mais perigosas que uma alma humana pode aventurar-se a ser. Quando nos foi oferecida essa missão _ a nós que nos identificamos com o sexo feminino _, acho que demonstramos uma tremenda coragem em adotar a roupagem de um corpo de mulher. Todo aspecto da história, cultura, política e dinâmica de poder social, bem como questões de gênero envolvendo coisas como o parto, corroboram isso pelo mundo todo.

Na mesma linha, há a tocante cena da Anka adolescente com Bonequinha, que resume assim a história da Medusa: "Ela deixava os homens com medo porque eles ficavam duros de olhar para ela. Aí mandaram o Perseu matar. Ele podia ter afogado, botado fogo nela, mas resolveu separar a cabeça do corpo, tirar dela o poder". É isso o que acontece: os homens se assustam com mulheres inteligentes? Preferem lidar apenas com um corpo?
Bem dito. Sim, acho que isso pode ser uma tendência que percorreu toda a nossa história, mas me alegro com esta geração que vem surgindo porque encontrei tantos homens que atuam com sua masculinidade em pleno poder. Eles se entendem completos, não precisam que qualquer pessoa seja diminuída e, ainda além disso, montes de homens dessa geração mais jovem defendem bravamente os direitos dos vulneráveis e menos privilegiados. Encontro com frequência homens que rejeitam ideias da Era Industrial que são redutivas e materialistas em prol de obter experiência, perspectiva, autoconhecimento e sabedoria. A aceitação e exploração de sua natureza xamânica desse jeito pelos homens é um sinal muito esperançoso de coisas melhoras ainda por vir.
A geração mais jovem tem homens que se entendem completos, não precisam que qualquer pessoa seja diminuída.
Como você vê a presença feminina nos quadrinhos, tanto as personagens quanto as autoras e desenhistas?
Tenho admiração por muitas mulheres de todos os tipos de quadrinhos. Algumas, como Alison Bechdel, Lynda Barry, Lucy Knisely, Raina Telgemeier, Thi Bui, Marjorie Liu e Sana Takeda, foram reconhecidas, com razão e amplamente, por sua genialidade. Outras, ainda, são amplamente reconhecidas por seu brilhantismo substancial e acho que isso enriquece muito o mundo. Penso em artistas como Carol Tyler e Mimi Pond, mas há tantas artistas/escritoras que eu gostaria de ver todos lendo, então estou preparando uma lista que vai se posta em meu novo website que estou renovando lentamente.
Antes de ser publicado pela Fantagraphics, seu livro foi recusado por 48 editoras. Você arrisca uma explicação para a recusa? Será que se assustaram, literalmente? Tenho a sensação de que leram apenas o começo da história, que é mais impactante, visualmente, do que profundo, e não perceberam a quantidade de temas que seriam abordados com inventividade e sensibilidade.
Acho que o livro era um monstro muito difícil, uma espécie de Frankenstein, grande e um tanto indefinível. Sendo assim, assustava as pessoas. Acho que existem sistemas dentro da indústria de publicação que exigem que um livro em potencial se encaixe direitinho em uma categoria preestabelecida. Talvez os editores devam pensar em criar uma categoria "coringa". Uma categoria que é uma não-categoria, porque pensar desse jeito permite que surjam e cresçam coisas novas, coisas que podem ser um pouco diferentes.
Qual foi a sua reação ao receber o prêmio Eisner e o do Festival de Angouleme, na França? Deu vontade de esfregar na cara daquelas 48 editoras?
Não, eu não sou desse tipo. Cometi enganos demais na minha vida para usar os erros dos outros para me gabar. O que eu desejo é que as pessoas no meio editorial reorientem-se de modo a se aventurar mais. Talvez confiar um pouco mais em seus instintos. Assim se consegue coisas mais interessantes. Ainda estou chocada que meu grande livrinho sobre monstros tenha ganhado qualquer coisa, mas estou tão grata ao pessoal da Eisner e da Angoulême. Minha Nossa, é algo tão incrível e atordoante!
Em uma entrevista, você se definiu como um Frankenstein e se disse feliz por ser toda remendada, em alusão às diferentes etnias e culturas de sua família. Como você vê o mundo de hoje, em que a tragédia dos refugiados e o drama da imigração ilegal suscitaram o terror da xenofobia?
Não acredito que, para a maioria das pessoas, sair de seu país de origem representa uma decisão banal e feliz. A maioria dessas pessoas é traumatizada. Estou muito triste quanto ao que foi feito com pais e crianças que fugiram de desastres em seus próprios países e vieram aos EUA. Crianças foram separadas de seus pais. De acordo com a mídia noticiosa dos EUA, crianças chegaram a ser perdidas. Não consigo entender o que "perdidas" signifique. Da última vez que ouvi, nenhuma explicação foi dada. É uma ferida descomunal na alma do país em que moro. Não se trata os outros assim.
O que se pode adiantar do Livro Dois de Minha Coisa Favorita É Monstro?
Estou tornando o Livro Dois o livro que quero que ele seja.