Uma das mais controversas histórias em quadrinhos está de volta ao Brasil – e agora na íntegra. A editora Pipoca & Nanquim vai publicar as 10 aventuras estreladas por Druuna, personagem criada pelo italiano Paolo Eleuteri Serpieri em 1985. Serão três volumes, a
R$ 120 cada, de capa dura com verniz no título e miolo em papel couché fosco de alta gramatura. O primeiro saiu em junho, o segundo virá no final deste mês e o terceiro, em outubro, trará também uma caixa especial para a coleção, um item que reforça o status de artigo de luxo concedido a essa mistura de ficção científica pós-apocalíptica com sexo explícito hiper-realista.
Esse tratamento editorial pode suscitar a primeira celeuma sobre Druuna: pornografia é arte? A indagação é antiga e gera respostas diversas, mas o debate mais recorrente em relação à HQ é a respeito do tipo de pornografia praticado por Serpieri.
Herdeira da futurista Barbarella (1962), ícone do quadrinho erótico criado pelo francês Jean-Claude Forest, Druuna nasceu, segundo o autor, para "desafiar a moralidade judaico-cristã ocidental" e como uma reação à epidemia de aids que matara amigos seus. Não à toa, a primeira aventura se chama Morbus Gravis, doença grave, em latim. Se, na vida real, o sexo virara uma sentença de morte, Druuna, na fantasia, o usaria como um meio de sobrevivência.
Na distopia imaginada pelo quadrinista, a humanidade está ameaçada de extinção por uma enfermidade que transforma as pessoas em monstros mutantes. O contraponto à degradação é o corpo perfeito da protagonista – que, ao longo das décadas (a série durou até 2018), ficou fisicamente parecida com a a modelo brasileira Ana Lima, capa da revista Playboy em abril de 1989.
Na sua porção ficção científica, Druuna, à luz de hoje, é bastante genérica. Trata-se de uma colcha de retalhos montada a partir de obras que se tornaram pilares amplamente referenciados do gênero, como Alien, o Oitavo Passageiro, Duna, O Planeta dos Macacos e Blade Runner, o Caçador de Androides. Em um mundo coabitado pela contradição entre alta tecnologia e barbárie, a inteligência é desprezada, a repressão é violenta, e uma instituição religiosa, os Sacerdotes, escondem um segredo que pode mudar a forma de encarar a realidade. A cada capítulo, a trama atira para mais lados, das viagens no tempo à clonagem humana.
A singularidade de Druuna reside na sua porção pornográfica. Basicamente, Serpieri estetizou o estupro. Lançando mão de sua maestria na anatomia, ele, de forma no mínimo polêmica, associou beleza à violência sexual.
Estética visual versus ética sexual
Druuna é um caso em que a estética visual deve ser sopesada pela ética sexual. Dono de um talento artístico inegável, Serpieri deu a sua criação um falso protagonismo, a exemplo do que faz um compatriota contemporâneo, Milo Manara (o primeiro tem 73 anos, e o segundo, 75). Também cultuado por uma parcela significativa de leitores, Manara elenca mulheres como suas principais personagens, mas elas só existem sob o olhar e para o olhar masculino; seus desejos são fantasias de um homem sobre o desejo feminino; o erotismo está atrelado à ameaça, ao abuso, à agressão, ainda que os traços delicados sugiram outra coisa. São meros objetos sexuais, que podem ser ligados ou desligados por um botão – vide O Clic. Têm tão pouca voz, que acabam literalmente apagadas – vide O Perfume do Invisível. (Uma resposta interessante aos dois autores é o trabalho de por outra italiana, um pouco mais jovem: nas HQs de Giovanna Casotto, 56 anos, que também investe no hiper-realismo sacana, o tom é sempre mais leve, mesmo quando há ameaça, abuso, alguma agressão, porque fazem parte da fantasia; aqui, os homens é que são os objetos sexuais, o que torna as histórias ainda mais excitantes.)
Serpieri abre mão de eventuais subterfúgios adotados por Manara. Troca o estilo algo onírico e esvoaçante de seu colega por uma representação brutalmente realista – Druuna não é nem um pouco invisível, e seu corpo sofre todo tipo de ataque: é açoitada, amarrada, violada. As quatro primeiras histórias – Morbus Gravis, Delta, Criatura e Carnívora – contam com 11 episódios de sexo não consensual, envolvendo a personagem principal ou coadjuvantes.
Mestra em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP) e editora do site MinasNerds, Dani Marino afirma que Druuna reforça o mito, bastante frequente na pornografia, de que mulheres sentem prazer em serem violentadas:
— A violência contra a mulher é algo tão naturalizado em nossa sociedade, que mesmo esse tipo de HQ tem muitas leitoras entre seu público, e eu fui uma delas há mais de 20 anos. Veja: em uma cultura que tenta nos definir como santas ou putas, ler Druuna quando se é nova e não se tem qualquer conhecimento sobre questões de gênero ou feminismo era algo transgressor. Quando você é um adolescente, então, e suas referências sobre sexo são todas relacionadas à pornografia, você vai acreditar que o tratamento que Druuna recebe é o que qualquer mulher gostaria de receber e as garotas irão acreditar que esse é o comportamento esperado de qualquer mulher que se considera sexualmente livre.
Já na primeira página, o autor parece reduzir à carne sua personagem, que diz não estar entendendo nada do que lê: "Acho que é hora de jogar fora estes livros. É muito perigoso" – o conhecimento, podemos inferir.
Suas únicas armas, portanto, são seu corpo (quase sempre desnudado), sua malícia e sua resiliência – é, para gáudio de uma legião de machistas, a mulher bonita e voluptuosa que "gosta" de apanhar. Em uma espécie de SUS pós-apocalipse, Druuna se deixa sodomizar por um médico para obter o soro capaz de fazer seu amado Schastar, infectado pela peste, retornar a sua forma humana.
— Velho sujo! Acabou comigo com aquele negócio. Mas foi gostoso — diz a protagonista.
Mais adiante, depois de ser estuprada por três homens a mando da líder de um bando de guerrilheiros, ela voltará a relativizar a violência a que foi submetida:
— Os seus diabinhos me deram muito prazer.
Roteirista e desenhista, Montserrat Montse, do Studio Seasons, entende que Druuna sempre foi uma obra "problemática em relação à cultura do estupro":
— A diferença é que, quando surgiu, as discussões sociais sobre isso eram muito menores e invisibilizadas. Hoje, Druuna pode até continuar a ser glamorizada por toda a geração que a consumiu anteriormente, mas também terá de envelhecer como qualquer outra obra e receber o peso de seus pontos questionáveis como influenciadora de cultura.
Um convite à reflexão
No material de divulgação da Pipoca & Nanquim enviado à imprensa, a HQ é descrita como "complexa, inteligente e tremendamente sensual", um "veículo perfeito" por meio do qual Serpieri aguilhoou o moralismo e debateu temas como fanatismo, opressão, militarismo, luta de classes e exploração da natureza. Drunna, a personagem, é a "brisa de ar fresco num ambiente totalmente degenerado". Não há menção aos termos estupro e violência sexual – esses aparecem em um "alerta de gatilho emocional" publicado na contracapa do livro. Os vídeos da editora também alertaram sobre o conteúdo. GaúchaZH pediu, reiteradamente, respostas de Daniel Lopes, um dos editores da Pipoca & Nanquim, a três perguntas, mas não obteve sucesso.
— Criticar uma obra não invalida a mesma, mas a eleva a um nível de discussão que possibilitará a grupos futuros produzir com novas gamas de situações e com aspectos mais diversificados da sociedade humana — comenta Montserrat. — Druuna cumpre apenas a função de objeto sexual, disfarçado de mulher que "assume" seu prazer. Seu emocional é tão esvaziado quanto o de uma boneca inflável. O leitor de Serpieri, no fundo, quer curtir toda aquela fantasia de violência sem se importar com o indivíduo, assim como faz ao ver um filme pornô. Ele não quer sexo real e emoções reais. Ele quer consumir sexo sem consequências porque, muitas vezes, não amadureceu emocionalmente e simplesmente não tem contato com a realidade das relações, então usa essa válvula de escape que, no final, só distorcerá mais ainda suas emoções e seus pensamentos.
Para Dani Marino, ainda que Serpieri possa ter, supostamente, tentado usar sua personagem como uma metáfora para a questão da deterioração da natureza pelo homem, a alegoria não funciona. Os constantes abusos sofridos por Druuna não provocam desconforto ou repulsa nos leitores, diz Dani:
— O leitor médio de HQ não é um homem letrado que buscou entender o contexto em que a obra foi produzida e é empático com Drunna. O leitor médio, que é o público alvo de qualquer publicação mainstream, sente enorme prazer sexual com a humilhação e o sofrimento femininos! Portanto, se alguém disser que consome Drunna porque se trata de uma ótima ficção científica, já sabemos que se trata apenas de um argumento infantil para justificar o real motivo de qualquer homem comprá-la, não é?
A editora do site MinasNerds não defende qualquer tipo de censura ou proibição. Mas faz um convite à reflexão:
— O que eu e muitas mulheres gostaríamos é de sermos ouvidas, assim, alguns editores entenderiam que publicar majoritariamente certos tipos de produções em detrimento de outras que não são tão violentas ou que não reforçam uma cultura que nos estupra e nos assassina diariamente seria mais "empático" da parte deles. Quando publicações como Druuna são publicadas e tão enaltecidas, ao mesmo tempo em que narrativas mais diversas são consideradas menos atraentes pelos critérios desses editores (majoritariamente homens brancos de classe média e heterossexuais), o que entendemos é que eles estão dizendo que nossa integridade física e emocional pouco importa.