Às 14h33min de 16 de agosto, uma mulher publicou um texto de 142 linhas no Facebook sobre o relacionamento que teve com um músico da banda Apanhador Só – no relato dela, um homem desleal, que usava artimanhas psicológicas para oprimi-la e chegou a quebrar seu dedo durante uma discussão. Às 18h01min do dia seguinte, o grupo anunciava a suspensão de suas atividades, por meio de um post na mesma rede social.
A repercussão rápida do caso, que logo se tornou assunto nacional, evidencia a força feminina na internet. Historicamente coadjuvantes em espaços tradicionais de debate, as mulheres amplificam e fazem valer a sua voz nos canais digitais – além de oferecer o ombro para as outras ou estimular alguma reação coletiva.
– O feminismo se popularizou, virou um debate corriqueiro. Não é mais assunto daquela meia dúzia de chatas que ficavam "pentelhando" os caras – resume Maria Fernanda Geruntho Salaberry, integrante do Coletivo de Mulheres da UFRGS e da organização da Marcha das Vadias.
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Na última segunda-feira (28), foi a vez de a escritora Clara Averbuck publicar um relato pessoal no Facebook, afirmando que havia sido estuprada. "O nojento do motorista do Uber aproveitou meu estado (ela havia bebido), minha saia, minha calcinha pequena e enfiou um dedo imundo em mim", descreveu. O resultado imediato foi uma enxurrada de comentários de apoio, de mulheres e homens, e o aplicativo de transporte em duas horas e meia informava ter banido o motorista. Mais tarde, ainda no mesmo dia, a escritora incentivou: "Que meu caso sirva para que outras mulheres não tenham medo de expor o acontecido. Que não se culpem". Clara ainda convidou internautas a relatarem situações de assédio utilizando as hashtags #MeuMotoristaAbusador e #MeuMotoristaAssediador.
Acredita a ativista Maria Fernanda que, com o advento das redes sociais, as mulheres encontraram um ambiente para denunciar e também discutir sua realidade fora dos espaços convencionais – uma reivindicação que já durava décadas. Formaram-se grupos que permitem conversar sobre questões que poderiam deixá-las constrangidas individualmente. Nesses espaços, diz Maria Fernanda, elas recebem o amparo de outras mulheres:
– Antigamente, a mulher apanhava e achava que o problema era ela, achava que não estava fazendo direito. Hoje, entra na internet e percebe que não é só com ela. E outras mulheres se solidarizam.
Como descreveu a filósofa Marcia Tiburi em um artigo publicado em 5 de dezembro de 2015 em Zero Hora: "As mulheres que não se sabiam feministas estão se descobrindo, saindo do armário do patriarcado também pelos portais virtuais". Falando por telefone com a reportagem, ela aprofundou a argumentação, explicando que, de tempos em tempos, o movimento irrompe na história, valendo-se dos mecanismos de sua época. Contudo, pondera que, impulsionado pelas redes sociais, o feminismo cresceu no Brasil apenas como discurso, já que a representação política das mulheres continua ínfima:
– Nas redes, parece que tudo está andando muito rápido, mas não está. Há uma matança incrível de mulheres, uma violência inacreditável.
A historiadora Ana Maria Colling, especialista em história das mulheres e gênero, acrescenta:
– São novos tempos, mas a palavra de ordem segue a mesma da década de 1970, quando dizíamos: "Meu corpo me pertence". Se a palavra de ordem ainda é a mesma é porque alguma coisa não avançou.
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Para a historiadora, de tanto ouvirem do marido, do padre ou de qualquer homem que são menores, por muito tempo, as mulheres se apropriaram desse sentimento.
– Mas isso está mudando – comenta Ana Maria Colling. – Eu não sou a mesma que foi minha mãe ou minha avó, e certamente nossas filhas serão diferentes.
Em movimentos como o feminismo, uma geração conquista, a seguinte usufrui e, em determinado momento, há uma geração posterior que naturaliza a nova realidade – dando-se conta de que ainda faltam avanços. Se há um resultado prático esperado do ativismo feminista nas redes sociais, para Ana Maria é a capacidade de desnaturalizar qualquer tipo de agressão contra a mulher, a começar pela cultura do estupro.
No combate online das violências contra as mulheres, as campanhas marcadas pelo uso de hashtags, como a lançada por Clara Averbuck, constituem uma das principais armas. Conforme levantamento divulgado em 2014 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 26% das pessoas entrevistadas concordaram com a afirmação "Se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros". Na época, milhares de mulheres responderam divulgando fotos de seus corpos expostos acompanhadas da inscrição #EuNãoMereçoSerEstuprada.
Dois outros grandes movimentos estabelecidos nos canais virtuais tiveram muita popularidade: #meuprimeiroassedio, por meio da qual as brasileiras partilharam depoimentos sobre a ocasião inaugural e traumatizante em que se viram vítimas de abuso masculino, e #meuamigosecreto, com denúncias de práticas e comportamentos machistas que conheciam – sem revelar nomes.
Em abril deste ano, atrizes e apresentadoras de TV fizeram uma campanha contra o ator José Mayer, consequência de uma denúncia de assédio sexual da figurinista Susllem Tonani. Entre outras, famosas e anônimas, Fernanda Lima, Astrid Fontenelle, Alice Wegmann e Drica Moraes se mobilizaram com a hashtag #ChegadeAssédio e também com outra, que sintetiza a solidariedade e o engajamento das mulheres nas redes: #MexeuComUmaMexeuComTodas. A TV Globo chegou a suspender o galã em função do episódio.
Também houve recentemente episódios que começaram com a denúncia não da vítima, mas de testemunhas, caso da suspeita de agressão cometida por Marcos Harter contra Emilly Araújo no Big Brother Brasil, também da Globo – que culminou com a expulsão do participante. Igualmente midiática, a denúncia de Poliana Bagatini, grávida, contra o então marido, o músico sertanejo Victor, foi outra que acabou com a saída do acusado da televisão – ele teve suas falas cortadas de um episódio já gravado do The Voice Kids e pediu afastamento do programa. A dupla sertaneja viu sua agenda afetada – um show em Pelotas chegou a ser cancelado –, Victor foi indiciado e ele e sua mulher se separaram.
Angelo Brandelli Costa, professor do programa de pós-graduação em Psicologia da PUCRS, observa que são vários os grupos que agora conseguem fazer sua voz ser ouvida:
– A internet quebra hegemonias na ocupação dos espaços tradicionais de debates. Em termos de poder, a esfera pública sempre foi ocupada por grupos majoritários. Isso mudou.
Já Raquel Recuero, professora e pesquisadora da UFPel e da UFRGS ligada ao campo das redes sociais, relata que movimentos ganham força nessas mídias porque é mais fácil se mobilizar na internet e encontrar quem tem pautas em comum. O próprio algoritmo do Facebook "entende" o que o usuário quer ver e mostra mais sobre os temas de seu interesse, com base nas suas atividades online. O problema é que a mesma rede social que une também tem o poder de polarizar. É aí que, muitas vezes, impera a lei do extremo: se você não está a meu favor, é meu inimigo.
– Quando a conversa se dá pessoalmente, você vê o outro, e a tendência é amenizar determinadas questões, afinal, ninguém quer terminar toda santa conversa dando um soco no seu interlocutor. Na internet, falando diante de uma tela, as pessoas tendem a se exaltar. E o debate perde características importantes, uma vez que o objetivo passa a ser silenciar o outro – comenta Raquel.
A falta do "olho no olho" também facilita linchamentos morais das mulheres que se expõem fazendo as denúncias e também de homens que, em função de alguma atitude ou relato, são considerados machistas.
– Há projeções das massas sobre indivíduos e há manipulações das massas. Hoje em dia, as pessoas pensam de maneira insuficiente sobre o que estão fazendo, além de desconhecerem o campo do Direito. Às vezes estão xingando o outro e cometendo um crime, mas não sabem que não se pode caluniar, difamar – diz Marcia Tiburi.
A filósofa acrescenta que as redes são um espaço de denúncia, de escândalo e de mistificação, no qual qualquer um exerce sua visão de mundo como um "inconsciente a céu aberto". Mas ela pondera: as ideologias às vezes se apresentam na sua verdade e, noutras, no seu esvaziamento:
– Muita gente usa as redes sociais em busca de diálogo, para expandir suas perspectivas. Ao mesmo tempo, parece que basta chegar na internet e se autoafirmar. O simples fato de se dizer feminista amplia o cenário do feminismo, mas não amplia a qualidade do feminismo que se propõe – opina. – Há de se tomar muito cuidado com essa carnavalização. O feminismo não é uma coisa fácil. Se fosse, a gente já teria transformado a sociedade.
O papel que o homem deve exercer nesse debate não é consenso. Há quem queira que eles participem, há quem queira integrá-los, mas também há quem reserve ao público masculino um espaço limitado.
A ativista Maria Fernanda compara esse debate a uma assembleia de trabalhadores – diz que os patrões não participam da reunião porque legislariam em causa própria. Ela defende que ter homens no debate pode inibir as mulheres – e eles podem, ainda, querer falar mais alto que elas:
– Temos 10 mil anos de patriarcado, do homem decidindo as coisas. Eles não estão acostumados a ficar quietos.A solução, segundo Maria Fernanda, é que eles conversem sobre feminismo com os cerca de 3,5 bilhões de homens que há na Terra, poupando as cerca de 3,5 bilhões de mulheres.
– Você acha que está qualificado para discutir sobre situação das mulheres? Converse com seu brother que é mais machista do que você, ou com seus filhos, sobre como se deve respeitar a mulher. Não vai faltar gente para você conversar – diz a ativista.
A historiadora Ana Maria vê a questão de outra forma. Para ela, o debate não deve ser uma "briga de dois exércitos" – mulheres versus homens:
– Se o homem é feminista, pode vir participar. O que não se quer é que participe um homem ou uma mulher machista.
Para o escritor Fabrício Carpinejar, antes de qualquer outra coisa, o homem tem de aprender a não ser o centro das atenções e começar a ouvir mais do que falar. Depois disso, deve praticar uma velha qualidade (que muitas vezes se perde nos debates das redes sociais): a empatia. Ele prega que o homem tem de se colocar no lugar da mulher – um lugar em que, historicamente, nunca esteve.
Carpinejar compartilha da ideia de Ana Maria, de que os homens se sentem amedrontados, acuados diante da iminência feminista nas redes sociais.
– Mas eu acho que o susto é uma forma de sensibilidade. Os homens pensam: não posso mais ser do jeito que eu era, então como vai ser agora? – diz o escritor. – Hoje uma vida privada é uma vida pública, não é mais permitido ter duas caras.
A respeito de uma possível sensação masculina de que "não se pode falar mais nada", Brandelli Costa comenta:
– Essa cultura de que debate a respeito de gênero deve ser silenciado é conivente com injustiças e violências contra mulheres.
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