Difícil saber o que se passa entre quatro paredes sem estar lá. Por isso, para a Justiça - com J maiúsculo -, a palavra da vítima, em tese, tem relevância especial nos casos de crimes sexuais ou violência doméstica, dos quais a maioria das vítimas é do sexo feminino.
Já para a justiça de rede social, a palavra da mulher é frequentemente questionada. Basta acompanhar a repercussão sobre a acusação de estupro contra Neymar, que, segundo vídeo publicado em seu perfil do Instagram, manteve relação sexual consentida com uma mulher em um quarto de hotel em Paris no dia 15 de maio e estaria sendo vítima de tentativa de extorsão.
Ela tem outra versão. Segundo o boletim de ocorrência que registrou, o consentimento inicial teria se rompido quando o jogador passou a ser agressivo naquela noite e a forçou a manter uma relação sexual.
Na tentativa de provar que o ato foi consensual do início ao fim, o jogador tornou públicas mensagens trocadas pelo casal antes e depois do encontro. A partir daí, proliferam na rede comentários como: “Ah, ela está mentindo, só quer fama”. “Foi pra Paris com passagem paga por ele e esperava o quê?” “O menino Ney caiu numa armadilha”.
Para Natalia Pietra Mendez, professora do departamento de História da UFRGS, duvidar da mulher é um comportamento padrão em uma sociedade na qual a violência sexual contra mulheres e meninas é “naturalizada”.
— Historicamente, é uma prática aceitável de exercício de poder. É importante dizer que, hoje, qualquer relação sexual sem consentimento é considerada estupro, mesmo que exista relação afetiva.
Chama a atenção da professora a mobilização das mais diversas opiniões sem qualquer conhecimento de causa. Ela reforça que não é possível saber, neste momento, quem está falando a verdade. E quando não se tem informações suficientes sobre um caso, diz Natalia, emitem-se opiniões baseadas em estereótipos de gênero.
Não existe perfil de estuprador nem de vítima
No vídeo, já removido do Instagram, Neymar diz:
- Quem me conhece sabe, sabe do meu caráter, da minha índole. Sabe que jamais faria uma coisa desse tipo.
As especialistas ouvidas por Donna são unânimes em afirmar que não existe perfil do estuprador nem perfil da vítima de estupro. Esse tipo de violência acomete mulheres de todas as raças, idades e condições sociais. Da mesma forma, varia o perfil dos autores dos crimes sexuais, majoritariamente homens. O que se sabe é que a maioria dos casos de estupro é cometida por pessoas conhecidas — parentes, ex-namorado, colegas de trabalho, marido.
Gabriela Souza, advogada cujo escritório atende exclusivamente mulheres, observa que muitos casos de feminicídio são o primeiro episódio de violência do assassino.
Enquanto nas redes as pessoas questionam a ética da mulher que acusa Neymar, na Justiça a palavra da vítima de crimes sexuais tem “importância probatória diferenciada justamente porque esses casos são cometidos em ambientes de difícil produção de provas”, afirma Gabriela. Para ela, as defesas deveriam ser feitas exclusivamente dentro do processo:
- O “tribunal do Facebook” não tem capacidade de absolver ninguém. Até então, Neymar era apenas acusado de estupro. Para condená-lo, é preciso reunir provas, realizar audiências etc. Com a exposição do caso, ele mesmo se tornou investigado, mas por outro crime - diz Gabriela, referindo-se à divulgação das imagens íntimas sem o consentimento da mulher.
É importante dizer que, hoje, qualquer relação sexual sem consentimento é considerada estupro, mesmo que exista relação afetiva.
NATALIA PIETRA MENDEZ
Professora do departamento de História da UFRGS
Fundadora do coletivo Minas Programam, a paulistana Bárbara Paes, 26 anos, que participa nesta semana da conferência Women Deliver, no Canadá – a maior do mundo sobre igualdade de gênero e direitos de mulheres e meninas –, reforça que existem outras formas de se defender de uma acusação de estupro que não envolvam a disseminação não consentida de imagens íntimas.
— Ele não poderia se valer do grande número de seguidores que tem para divulgar essas imagens. Isso é muito problemático. É importantíssimo que ele tenha o direito de se defender. Mas essa defesa não deve vir às custas da exposição da vida de uma pessoa — afirmou a ativista a repórter Larissa Roso, que participa da cobertura do evento.
Já o pai de Neymar justificou a exposição da conversa íntima dizendo que não havia escolha frente a uma acusação tão grave.
— Não tínhamos escolha. Eu prefiro um crime de internet ao de estupro. Foi o Instagram que tirou (o vídeo com a troca de mensagens entre o casal). Pelas regras do Instagram, estava normal. Ele preservou a imagem, o nome. Ele precisava se defender rapidamente. É melhor ser verdadeiro e mostrar o que aconteceu. Sabíamos da chantagem, mas não da coragem de fazer um B.O. em cima de uma situação dessas — declarou o pai do atleta.
Neymar, que surgiu como um dos “meninos da Vila”, da geração de jovens craques do Santos de quase 10 anos atrás, é ainda considerado um moleque no imaginário social, diz a advogada Gabriela. Ao expor a acusação para seus quase 120 milhões de seguidores, ele conta com essa imagem a seu favor, como se não fosse o que de fato é, nas palavras de Gabriela: “Um adulto, milionário, que tem que responder por seus atos”.
No momento em que joga o caso para o "tribunal das redes sociais" na tentativa de defesa, Neymar repete um comportamento padrão de homens que veem questionada sua honra e tentam limpá-la manchando a imagem da mulher, explica a advogada.
— Ele fragiliza a vítima e se fortalece, apoiado no poder econômico e social de que desfruta. Enquanto, para ela, falta apoio e empatia — opina Gabriela.
"As mulheres honestas"
A advogada destaca a Lei Maria da Penha, de 2006, como um avanço na defesa das mulheres vítimas de violência doméstica, que nem sempre tem cunho sexual. Ela cita uma decisão ocorrida em março deste ano, no Rio Grande do Sul, cujo acórdão afirma que “a palavra da vítima tem especial relevância no contexto de violência doméstica” considerando que a maioria dos casos não tem testemunhas. Embora a acusação contra Neymar não se enquadre necessariamente nesta lei específica, é um clássico exemplo de um crime, se houve, sem testemunhas.
Apesar de reconhecer avanços, Vanessa Ramos da Silva, advogada colaboradora da ONG Themis, ressalta que existe ainda um tratamento diferenciado para mulheres consideradas como "vítima ideal" — a tal da "mulher honesta".
— A vítima ideal seria uma mulher casada, trabalhadora, violentada por um desconhecido na rua, de forma inesperada — exemplifica Vanessa. — Já uma mulher violentada por um homem com quem ela tem ou teve um relacionamento, sua palavra já não vale mais tanto (nos tribunais). Como se o marido ou namorado tivesse algum poder sobre ela.
Até 2005, apenas as "mulheres honestas" eram protegidas por lei de violência sexual no Brasil. Com a reforma no Código Penal daquele ano, a expressão “mulher honesta” foi removida do texto e crimes sexuais não se chamam mais “crimes contra os costumes”, mas “crimes contra a dignidade sexual”.
Mesmo que questões legais tenham sido superadas, essas ideias machistas ainda são muito enraizadas culturalmente e se manifestam em opiniões como “essa aí merecia”, observa Natalia, que denuncia a persistência da objetificação da mulher. A mesma legislação que marginalizava “mulheres desonestas” previa que, se a mulher vítima de violência sexual se casasse com o seu agressor ou com outro homem, o crime deixava de existir.
— Com leis como essas, foram se criando mecanismos de perpetuação de preconceitos.
A sociedade ainda não enxerga as mulheres como sujeito, mas como objeto de prazer masculino. Sendo ela um objeto, o homem se vê no direito a ter acesso fácil ao sexo — diz Natalia.
O que diz a defesa de Neymar
Em nota enviada à TV Globo, que entrevistou José Edgard da Cunha Bueno Filho, ex-advogado da mulher que acusa Neymar, o advogado do atleta Gustavo Xisto afirmou que, em encontro realizado no dia 29 entre dois defensores do jogador e Bueno Filho, houve solicitação de “compensação financeira ('cala boca') para que a suposta vítima não relatasse as alegadas agressões às Autoridades Policiais”. Ainda de acordo com a nota, “não foi apresentado nenhum laudo médico, tampouco vídeo, apenas fotografias”. Posteriormente, Bueno Filho afirmou que o encontro do dia 29 pode ter sido uma armadilha para proteger Neymar.
* Colaborou Larissa Roso